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Alunos gravam livros para colegas de escola que não podem ler no litoral de SP

Folhapress | 16/09/18 - 22h48
Reprodução UOL

Com epilepsia e uma síndrome paralítica, o adolescente, que ainda perdeu o pai por um ataque cardíaco fulminante no último ano, não desistia.

Folheava incansavelmente os livros com contos escritos pelos próprios amigos, fixava atentamente os olhos nas ilustrações, mas não compreendia. O caso mobilizou os alunos e colegas de uma escola em Itanhaém, no litoral sul de São Paulo, a transformar em sons as linhas que Kayky não conseguia ler.

"Por que não produzimos um audiolivro para ele também ouvir as histórias?", propôs Alessandra Aparecida Sales Cavalcante, 45, orientadora da escola Maria Aparecida Soares Amêndola. Com ajuda dos próprios estudantes, os educadores viram a chance de atender outros alunos com necessidades especiais como síndrome de down, autismo, além de deficiências visual, auditiva, física e mental.

Além de Kayky, só na escola há outros dez casos. Foi assim que, em maio deste ano, os alunos passaram a produzir os audiolivros na escola, com ajuda de uma professora que tinha formação musical. Cada conto é feito com a narração de um aluno, captada por um microfone e editada.

Antes de ser concluído, há o trabalho de sonoplastia e efeitos especiais: a porta que bate, o som do trovão, a chuva caindo no chão. As primeiras gravações foram feitas com contos clássicos como "A Princesa e a Ervilha", "Os Três Porquinhos" e "A Bela e a Fera".

"Poderíamos usar materiais prontos, mas as crianças se cansam rapidamente e temos alunos muito bons. Falei: 'vamos fazer nós mesmos'. Eles toparam na hora", diz a orientadora Cavalcante. "É tudo muito natural, por isso acreditamos que as pessoas têm sido tocadas. Elas sentem a diferença, a criança se identifica", afirma Sandra Regina Veloso, 58, diretora da escola.

Apesar da disposição, gravar não é tarefa fácil. Os estudantes precisam ficar até depois do horário da aula e na sala de gravação só entram um aluno e um professor, nada de amigo por perto. "O mais difícil foi controlar o nervosismo. Acelerávamos muito, falávamos baixo quando era para ser alto", disse Laura Bellon, 13, primeira a gravar.

Vícios de leitura também foram recorrentes: "blé", "prr" e um som de "tsc", produzido nas pausas, foram corrigidos à exaustão. "Só não senti dificuldades no último. Já sabia que não podia fazer 'blé'", disse Ana Khadyja Mendes, 13.

O projeto ainda ganhou uma nova forma de inclusão nos últimos dias. Uma das alunas, Jully Silva Carneiro, 14, gravou em vídeo um dos contos com linguagem de sinais, usada para comunicação entre deficientes auditivos. Ela tem os pais e o irmão com a deficiência em casa.

O projeto dos audiolivros nasceu em meio ao momento mais difícil atravessado pela escola. Entre janeiro e fevereiro, o local foi invadido e sofreu diversos furtos e depredações. Os professores e pais tiraram do próprio bolso para colocar a casa em ordem novamente.

As crianças vivem em uma região mais pobre da cidade. "Muitas delas nunca foram ao shopping ou comeram no McDonald's. Há muitos problemas nas famílias, também. Falam que somos como uma fênix, vivemos renascendo", conta Alessandra.

Desde o início do projeto, já foram mais de 20 títulos gravados. O trabalho, inclusive, alimenta três das 40 escolas da rede municipal da cidade. "O Kayky me falou: 'Eu agora consigo ler um livro'. Não conseguíamos vê-lo parado, isso nos emociona muito", disse Fabricia Sales Cavalcante, 42, orientadora educacional.

A ideia é que, até o fim do ano, os audiolivros sejam levados a todas as 40 escolas da rede municipal de ensino da cidade. Ao todo, são 423 alunos de educação inclusiva. "Estamos agora mostrando aos professores que atendem essas crianças como podem utilizar mais esse recurso, mas não só os alunos com deficiência, como os que têm dificuldade de aprendizagem", disse Fabrícia.

A escola tem, ao todo, 345 alunos. Até o fim do ano, a estimativa é de já ter, pelo menos, 60 títulos gravados e colocar o acervo à disposição de biblioteca municipal da cidade.