Educação

Figura lendária do sertão nordestino, Maria Bonita ganha biografia

Livro desafia a associação entre a cangaceira e o feminismo; reportagem refaz caminhos percorridos por ela com o bando de Lampião, seu parceiro sanguinário

Folhapress | 03/09/18 - 23h27
Maria Bonita | Reprodução

O agricultor desempregado Adelmo Gomes de Oliveira, sobrinho-neto da famosa cangaceira Maria Bonita, a mulher de Lampião, estava encostado na mesa de bilhar do bar. A chave veio do bolso.
Ele abriu o portão do museu Casa de Maria Bonita, construção de pau-a-pique comum no semiárido nordestino. Foi naquele lugar que a bandida mais famosa do país nasceu e viveu por cerca de duas décadas no início do século passado, antes de deixar o marido, um sapateiro, e partir com o bando de Lampião por caminhos tortos e o sol a pino.

Essa história todo mundo ali conhece. Mentira. O próprio Adelmo só soube quando adulto que a tia-avó existira de fato. E olha que ele passou a infância e a adolescência sob aquele mesmo teto em Malhada da Caiçara, um povoado a 40 km do município baiano de Paulo Afonso.

O cangaço tem disso, sua história foi sendo construída entre causos e o testemunho de quem viu o banditismo de perto, de modo que na própria região em que teve origem o povo não sabe o que é verdade e o que é mito.

Sabe-se que ele foi assim cunhado no século 19 e teve origem em injustiças sociais e disputas latifundiárias. Tomou proporções midiáticas entre o fim do século 19 e o início do 20, com direito a artigos na imprensa americana.

Nômades errantes, cangaceiros apareciam sem anúncio prévio, saqueavam, estupravam, matavam. Também presenteavam e protegiam seus favoritos. Gostavam de farra, perfumes, joias, sexo.
Passavam com frequência também por momentos trágicos, como quando as mulheres precisavam doar os filhos recém-nascidos a outras famílias. Os bebês eram incompatíveis com a vida de bandidos sempre em fuga.

Segundo Adelmo, seus familiares mais velhos sempre se referiram a Maria Bonita mais como uma lenda do que como mulher de carne e osso. Tanto que, quando ele se mudou da casinha de taipa, vazia pela primeira vez, ela foi ruindo com o vento, o sol e as chuvas.

Há 12 anos, o governo local contratou Adelmo para reconstruí-la, o que foi feito em dois meses com base na memória dele, em fotos e nos próprios escombros –Maria Bonita ganhava importância. Também delegaram a ele a função de guardar a chave do museu, fazer a manutenção e cobrar os ingressos de R$ 5.

O dinheiro vai para a sua família. São cerca de mil visitas por ano, segundo a Secretaria de Cultura e Esportes de Paulo Afonso. No último sábado, ninguém havia passado por lá até o fim da tarde. O movimento mais notável era o de lagartos passando entre os cactos.

Quando trabalhava na reconstrução é que Adelmo foi se dando conta. "Pela primeira vez vi uma imagem de Maria Bonita e vi que ela existiu de verdade", diz, apontando retratos da tia-avó nas paredes.
Nessas fotos, Maria Bonita está sempre bonita mesmo. Com 1,56 metro de altura, ao menos para retratos, vestia-se com esmero, o cabelo meticulosamente penteado e preso com fivela. Anéis e correntes.
A versão de uma mulher graciosa sempre teve mais espaço do que a da fêmea bruta –o que ganha contrapontos agora com o lançamento de "Maria Bonita "" Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço", de Adriana Negreiros.

Se Maria Bonita arrancava os brincos de suas inimigas, rasgando-lhes os lóbulos, os cordéis, cantigas e histórias repassadas pelos mais velhos optaram por versões adocicadas pelo feminismo ou que dão traços cômicos à violência.

Maria Bonita foi batizada com tal adjetivo só bem depois de sua morte. Bonito, de acordo com o dicionário Houaiss, é algo "cuja forma, som ou cores agrada aos sentidos; que revela nobreza de caráter, bondade, magnanimidade; que demonstra competência, profissionalismo, talento".

Em seu livro de estreia, Negreiros refaz a trajetória dessa figura apostando que, sim, ela criou uma nova noção de feminilidade em uma região onde as mulheres eram tratadas quase como animais.
Entediada com o primeiro casamento, Maria Gomes de Oliveira optou por uma vida louca e errante, e se firmou como liderança na companhia de um sanguinário, Lampião. Diziam que era mulher de um riso solto e volumoso, típico das quengas.

O feminismo ganhava campo na Europa, com ecos na América do Sul, mas Negreiros acha que associar a cangaceira ao movimento é um exagero. "Para a época, ela era empoderada. Rompe com o marido e vai embora com um cangaceiro, uma atitude transgressora. Mas, em situações de violência contra a mulher no bando, não assumia a posição de considerar que havia opressão com elas, pelo contrário."

A pesquisadora exemplifica essa contradição. "Não há relatos de que Maria Bonita tenha defendido Lídia, sua parceira no cangaço, quando esta foi morta pelo cangaceiro Zé Baiano por causa de um adultério. Se uma mulher contrariava os códigos de conduta, Maria Bonita era a favor da aplicação da lei do bando."

Em visita ao Raso da Catarina, região seca habitada há mais de um século pelos índios pancararés e onde as narinas são corroídas pela poeira e o calor, Negreiros enfatiza a relação entre a violência praticada pelos cangaceiros e a geografia de natureza agressiva.

A vegetação retorcida, de onde às vezes desponta um mandacaru ou um facheiro, espécies de cactos, cria espaços labirínticos no raso, que também é morada de urubus e da arara-azul, hoje ameaçada de extinção. Anda-se quilômetros sem que um riacho surja no horizonte.

Por causa do difícil acesso, cangaceiros encontravam ali um refúgio quando queriam se esconder da polícia. Segundo Calango, guia local, aprenderam com índios a reconhecer no piso seco de rios temporários uma forma de cruzar o sertão sem perder o norte.

Milton Santos Nascimento, o cacique de uma tribo de 22 famílias que ainda resistem isoladas ali, diz ter ouvido que há tesouros enterrados por Lampião esquecidos por aquelas terras. Negreiros conta que a história do cangaço foi sendo construída assim, margeada por muitas lendas.

Conta-se também que há máquinas de costura, armas e munições escondidas em diversos pontos do raso. Nascimento diz que há uma caverna com muito ouro, mas ela fica sob a mira de um rifle até hoje engatilhado. Quem ousar entrar na gruta pode se tornar uma das últimas vítimas do bando de Lampião.

A escritora associa os homicídios, as torturas e os estupros cometidos pelo cangaço não apenas à hostilidade da seca, mas à própria relação que essa condição foi criando entre o homem e o gado.
"O cangaço encontrou no sertão uma região aberta à violência", ela afirma. "Existe uma moral do sertanejo cujas virtudes são a valentia, a coragem e a brabeza ligadas à sua própria sobrevivência."
Na volta para a área urbana de Paulo Afonso, enquanto dirigia uma camionete quatro por quatro, Calango contou como se mata um boi segundo a tradição local. "Um machado no meio de cabeça."

Um taxista também disse que, para fazer o charque, existe uma técnica que é cortar os nervos das patas do animal e deixar ele agonizar por um dia até o sacrifício.
Um dos episódios mais chocantes no livro de Negreiros retrata como o cangaceiro Corisco, ou o Diabo Loiro, sequestrou a pequena Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, quando ela tinha 13 anos.
Ele a estuprou, causando nela um sangramento que durou dias. Com o convívio, o ódio de Dadá passou. Corisco a ensinou a ler. E eles se tornaram marido e mulher.

Próximo ao município alagoano de Piranhas, à beira do rio São Francisco, a história muda de rumo e três cruzes fincam entre pedras, na grota de Angico, o fim do bando de Lampião ""uma das cruzes é dedicada ao único dos 48 volantes, ou policiais, que morreram em combate.

O massacre aconteceu em julho de 1938, próximo ao local onde hoje há um restaurante. Entre os cangaceiros, foram mortos nove homens e duas mulheres. Maria Bonita, entre elas, foi decapitada viva.
Segundo Jairo Luiz Oliveira, criador da chamada rota do cangaço –um circuito que inclui a trilha que leva ao lugar das mortes–, uma das cruzes foi posta ali por um médico espírita. Ele teria sonhado com Lampião e quis prestar homenagem. "Depois a gente não permitiu que colocassem mais porque todo mundo queria colocar cruz aqui e ia virar um monte de cruz."

Após o embate, as cabeças dos mortos foram levadas ao centro de Piranhas pela força policial, cujas ações eram tão arbitrariamente violentas quanto as dos cangaceiros.
Quando não torturava, a polícia destelhava as casas e sacrificava o gado dos coiteiros, nome dado a pequenos agricultores ou proprietários de terras que abrigavam cangaceiros em suas casas, às vezes por medo de contrariá-los.

Este repórter visitou a casa onde as cabeças foram temporariamente guardadas em Piranhas, com endereço fornecido por um pesquisador do cangaço e empreendedor turístico que vive na cidade.
Ana Lucia Vieira Lima atendeu a porta de uma casa simples, decorada com sofás de couro sintético branco.

A atual moradora nega que essa história tenha acontecido naquela residência. Ela diz que foi em uma casa vizinha, onde hoje funciona uma pousada. Mas há um porém –as casas do quarteirão, naquela época, comunicavam-se com portas de uma sala para a outra, afirma a dona de casa.

Evangélica, Lima não topou posar para foto. E, confrontado com o depoimento dela, o pesquisador que havia cedido o endereço também atribuiu à sua religião a recusa de assumir que cabeças de cangaceiros estiveram um dia ali.

Ela, contudo, diverte-se contando uma história de seu pai: Lampião um dia o recrutou como menino de recados, deu ordem a ele para que levasse um bilhete para Maria Bonita.
Muita gente naquele pedaço do sertão tem pai, mãe, avô e avó com história ligada ao cangaço. Alguns acham até que é uma história que não acabou. Para o agricultor Moisés José de Souza, que andava à beira de uma estrada de terra, a violência da época apenas migrou. Para as capitais.

Maria Bonita -Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço
De Adriana Negreiros. Editora Objetiva, 296 páginas, R$ 49,90 (R$ 29,90 para o e-book)

Maria costumava se deslocar pelo Raso da Catarina no lombo de Velocípede, um burro selado do qual sentia imenso orgulho. Ficava uma fera quando alguém zombava do seu animal de estimação. [...] Velocípede era uma criatura mimada. Se estivesse num mau dia, galopava a ponto de deixar sua amazona botando os bofes para fora
Trecho de 'Maria Bonita - Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço'