Redação
Texto de Nuno Vasconcelos, no portal IG:
LEIA TAMBÉM
“Até a semana passada, as únicas imagens de um ato golpista tomadas dentro da sede de um governo na América Latina mostravam o presidente do Chile, Salvador Allende, de capacete militar e segurando um fuzil, no interior do Palácio de la Moneda, em Santiago, pouco antes de ser abatido a tiros pelas tropas do general e futuro ditador Augusto Pinochet. A fotografia em preto em branco, última do presidente com vida, foi feita na manhã do dia 11 de setembro de 1973 é dramática e carregada de significados. Ao lado de Allende, que olha para o alto talvez para ver os aviões que bombardeavam o La Moneda naquele instante, alguns seguranças armados, com os rostos tensos, também observam de onde vinha o perigo.
Diante da cena, insistir em chamar de tentativa de golpe aquilo que se viu nos vídeos que circularam na semana passada e que mostram o interior do Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 8 de janeiro deste ano, deve ser considerado uma ofensa à memória de Allende. E, também, de tantos outros que perderam a vida na luta pela democracia nos anos de chumbo que a América Latina viveu no passado recente.
As cenas vieram à tona numa reportagem da emissora CNN e, para vergonha do Brasil, logo correram o mundo. Elas mostram o general da reserva Marco Edson Gonçalves Dias — amigo, conselheiro e, até prova em contrário, homem da mais absoluta confiança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva —, então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), agindo como se ciceroneasse os invasores num tour pelo terceiro andar da Planalto no dia 8 de janeiro. Em momento algum o general esboça qualquer traço de nervosismo ou de tensão. Ele também não faz qualquer sinal de resistência diante dos invasores que não enfrentaram qualquer resistência para entrar pela porta da frente do palácio e sair quebrando tudo o que encontravam pela frente.
Os agentes do GSI que estavam de plantão naquele momento, ao invés de fazer jus ao treinamento que receberam e tentar conter os invasores, batem em retirada e deixam o caminho livre para a turba. O desfecho da história é conhecido. Flagrado pelas imagens geradas pelas câmeras de segurança do próprio palácio, Gonçalves Dias, como sempre acontece nessas ocasiões, perdeu o cargo de ministro — mas jura inocência e disse que fez tudo para impedir a ação dos invasores, ainda que as imagens mostrem exatamente o contrário. Só depois disso, o ministro Alexandre de Moares, do STF, determinou que Gonçalves Dias fosse ouvido no inquérito sobre o 8 de janeiro. Na sexta-feira, dia 21 de abril, 103 dias depois do episódio, o general compareceu à sede da Polícia Federal para falar da invasão ao Palácio cuja segurança ele deveria manter.
O que ele disse não se sabe, mas as cenas falam por si. As conclusões diante delas, porém, dependem da posição política de quem as vê. Parlamentares e jornalistas simpáticos ao governo, os mesmos que — para não mencionar Jair Bolsonaro —, negaram ao ex-presidente Michel Temer a presunção de inocência diante das acusações atiradas contra ele no exercício do mandato, se apressaram em dizer que nada do que é mostrado ali altera a narrativa de que houve uma tentativa de golpe.
Gonçalves Dias teria sido, como alguns chegaram a afirmar, vítima de uma trama urdida pelos defensores do governo anterior e que, na verdade, ele e seus comandados agiram com equilíbrio para tirar os invasores do Palácio. A oposição, claro, viu nas cenas as evidências do que muita gente vem afirmado desde o primeiro momento: o vandalismo no interior dos prédios invadidos só alcançou a dimensão que alcançou porque os invasores contaram com a facilitação de pessoas que, a rigor, são muito bem pagos para fazer o que não fizeram diante dos invasores.
Veja por exemplo o caso do Congresso Nacional. Nos dias normais, quem anda pelos corredores da Câmara e do Senado, em Brasília, volta e meia dá de cara com rapazes e moças vestidos como se estivessem em missão de Guerra. É a chamada ‘Polícia Legislativa’. Seus integrantes têm salários e benefícios equivalentes ou até superiores ao pessoal da Polícia Federal. Essa “força”, que custa uma fortuna ao contribuinte, só existe porque, no entender dos senhores parlamentares que a conceberam, a presença de outros policiais no interior do Congresso seria uma afronta à independência do Poder Legislativo.
Pois bem… na hora em que a situação apertou, os vândalos invadiram o recinto e a ação da tal “Polícia Legislativa” se fez necessária, não havia traço de sua presença no local — e, aqui entre nós, tentar justificar a ausência dos agentes pela folga dominical a que tinham direito soa como uma anedota de gosto duvidoso. Acontece que, diante das cenas lamentáveis vistas no interior do parlamento, a primeira atitude dos responsáveis por essa “tropa de elite” foi varrer a própria culpa para debaixo do tapete e responsabilizar a Polícia Militar do Distrito Federal por não ter agido para conter os invasores.
A PM, claro, tem sua parcela de culpa no episódio e nada justifica um número tão pequeno de agentes escalados para conter a malta. Ocorre, porém, que os responsáveis por seu comando já foram afastados e estão respondendo pela suposta omissão que cometeram.
E os outros? Por que em nenhum momento, a Procuradoria Geral da República e o Superior Tribunal Federal se deram ao trabalho de estender a cadeia de responsabilidades para além das autoridades do Distrito Federal? Se o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que havia acabado de assumir a Secretaria de Segurança do Distrito Federal, mas não estava em Brasília no dia dos acontecimentos, permanece preso sem qualquer julgamento por ter supostamente se omitido diante dos atos, que atitude será tomada em relação a Gonçalves Dias?
Calma! Ninguém aqui está pedindo a prisão do ex-ministro. Mas qualquer atitude que vier a ser tomada em relação a ele e qualquer tentativa de aliviar sua responsabilidade pelo quebra-quebra pode colocar em xeque, de uma vez por todas, a isenção das autoridades que apuram os acontecimentos do dia 8 de janeiro.
Insistir na narrativa de que tudo aconteceu por obra e graça dos bolsonaristas e querer eximir autoridades do novo governo e dos outros poderes de toda e qualquer responsabilidade sobre os atos que tinham a obrigação de evitar pode acirrar ainda mais os ânimos no ambiente político brasileiro…
O que aconteceu no dia 8 de janeiro, como vem sendo dito neste espaço desde o início, foi um ato de vandalismo irresponsável, uma manifestação destrambelhada promovida por um monte de celerados que, sem a menor sombra de dúvida, passou dos limites em suas manifestações. Apuradas as responsabilidades individuais, os atos devem ser punidos na forma e com todo rigor da lei. Mas daí a querer equiparar aquelas pessoas desastradas com os golpistas que mataram Allende ou que abusaram da violência na Argentina, no Uruguai e aqui mesmo, no Brasil, ou, ainda, chamar esses arruaceiros de terroristas, como se usassem métodos equivalentes aos do italiano Cesare Battisti — acolhido e tratado como companheiro pelo governo do Brasil depois de assassinar três inocentes indefesos em seu país —, vai uma diferença quilométrica.
Seja como for, e qualquer que seja o desfecho jurídico que essa questão venha a ter, ainda é cedo para contabilizar o custo político do 8 de janeiro. O certo, porém, é que ele será mais elevado do que se imaginava no início — quando tudo parecia caminhar para a condenação em praça pública dos ‘bolsonaristas’. A primeira consequência, além da convocação tardia de Gonçalves Dias para depoimento, foi o fracasso de todos os esforços feitos pelo governo para impedir a instalação de uma CPMI para apurar os fatos do dia 8 de janeiro.
A comissão vinha sendo reivindicada pela oposição. Embora se apresentasse como como vítima da “tentativa de golpe de Estado”, o governo não vinha poupando esforços para impedir que a comissão fosse instalada e desse à oposição, pelo menos, um palco onde pudesse expor e debater sua versão dos fatos…”
LEIA MAIS
COMUNICADO Com Boulos no Planalto, Lula tenta reconstruir a esquerda O coração dividido de Luciano Barbosa Ufal é destaque em novas variedades de cana-de-açúcar