Gustavo Gonçalves/FolhaPress
Até o Sisu de 2020, Heloisy Rodrigues, 25, nunca tinha ouvido falar em IA (inteligência artificial). Durante todo o ensino médio, o sonho da estudante era cursar medicina em uma universidade federal, pela estabilidade da carreira e pelo mercado de trabalho. Após três tentativas frustradas, ela ouviu por acaso sobre uma nova graduação na UFG (Universidade Federal de Goiás) e, sem ser da área da informática, decidiu arriscar.
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"Foi um tiro no escuro, antes do boom das IAs, mas deu muito certo", diz. Cinco anos depois, o curso de inteligência artificial da UFG superou medicina e se tornou o mais concorrido da universidade. Heloisy, única mulher da turma, está entre os formados pioneiros.
A graduação em inteligência artificial tem cinco anos de história no Brasil. Em 2020, a UFPB (Universidade Federal da Paraíba) foi a primeira instituição pública a lançar um curso de ciência de dados e inteligência artificial. No mesmo ano, a UFG criou a primeira graduação com foco exclusivo em IA no país.
Hoje, o MEC (Ministério da Educação) reconhece 28 cursos de graduação com o nome de inteligência artificial no país. No Sisu 2025, quatro deles ofereceram vagas com essa denominação.
Na UFG, o bacharelado em inteligência artificial teve nota de corte de 811,01 pontos, a mais alta da instituição. Mas não é só em Goiás que o curso superou graduações tradicionais. Na UEL (Universidade Estadual de Londrina), o curso de ciência de dados e inteligência artificial exigiu 735,20 pontos, ocupando o 11º lugar entre os mais concorridos da universidade à frente de engenharia civil e engenharia elétrica, por exemplo. Na UFPB (Universidade Federal da Paraíba), ficou em 10º lugar, com nota de corte de 713,48, acima de medicina veterinária e arquitetura e urbanismo.
Segundo o professor do Instituto de Informática da UFG, Anderson Soares, as discussões para a criação do curso começaram em 2017. "O hype acontece na ciência primeiro. Embora a sociedade em geral tenha despertado interesse mais recentemente, quem está nas trincheiras da pesquisa já via isso lá atrás", afirma.
O curso foi oficialmente criado em 2019, como parte de um movimento para ampliar a formação de profissionais na área e aproximar a universidade do mercado. "Naquela época, nós já desenvolvíamos projetos de inovação com empresas. Mas usávamos mestrandos e doutorandos, porque o perfil para trabalhar com IA estava muito restrito à pós-graduação", explica.
Com o crescimento da demanda, a universidade firmou um acordo com o Governo de Goiás e recebeu um investimento de R$ 12 milhões da Fapeg (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás) para criar um centro de inteligência artificial.
Durante a graduação, Heloisy participou de iniciativas com diferentes empresas e em áreas variadas. "Desde o início, aproveitei a chance de explorar várias frentes dentro da inteligência artificial. Queria entender bem o que existia, para escolher com mais segurança meu caminho no final do curso", conta. Hoje, ela está no ramo de consultoria de IA.
De acordo com Soares, as chamadas IA generativas em especial os agentes autônomos, que executam tarefas complexas com pouca ou nenhuma supervisão humana estão no centro da demanda atual por profissionais da área. Ele ressalta, porém, que outras especialidades continuam relevantes, como visão computacional e processamento de texto.
Em 2023, a ABC (Academia Brasileira de Ciências) alertou que o Brasil entrou tarde na corrida global pela inteligência artificial. Segundo a entidade, países que hoje lideram o desenvolvimento da tecnologia começaram a formar profissionais especializados há pelo menos uma década.
A avaliação está no documento "Recomendações para o Avanço da Inteligência Artificial no Brasil", lançado naquele ano. O texto cita, por exemplo, que cidades como Buenos Aires conseguiram atrair mais mão de obra qualificada em tecnologia do que São Paulo.
Para Alex Echeverria, 23, também egresso da primeira turma da UFG, a criação do curso foi um ponto de virada pessoal. Desde criança, se envolvia com robótica, videogames e computadores. Cogitou fazer engenharia mecatrônica, mas mudou de ideia ao descobrir o bacharelado em IA da UFG. "Foi coisa de intuição mesmo. Na hora, eu soube que era para mim.
" Atualmente, ele é head de IA em uma empresa de transporte coletivo em Goiânia.
Alex vê na IA uma chance para o Brasil romper com o histórico de atraso nas grandes transformações tecnológicas. "Ficamos para trás em todas as revoluções industriais, por falta de capital, investimento e visão. Mas agora, num mundo governado por dados, temos uma oportunidade real de protagonismo", diz.
Um dos cursos mais recentes de inteligência artificial é o da PUC-Rio, que estreia neste semestre. A decisão de esperar foi estratégica, segundo a instituição: em vez de adaptar um curso já existente, a universidade criou uma formação do zero, com base em estudos de mercado e consultas a especialistas. "Não adiantava só puxar algumas disciplinas. IA precisava de um curso com identidade própria", diz Paula Maçaira, coordenadora da nova graduação.
A proposta da PUC-Rio é formar profissionais que dominem os métodos da IA, mas que também saibam questionar seu uso. "O risco é formar apenas operadores de tecnologia. A gente quer gente capaz de pensar o que está fazendo e para quê", afirma Maçaira.
ÉTICA NO USO DA IA
Com a popularização da IA, vieram também os debates sobre seus impactos sociais e ambientais do consumo excessivo de energia por grandes modelos de linguagem ao uso de dados pessoais sem consentimento.
Os cursos da área se prepararam para isso. Na PUC-Rio, de acordo com Maçaira, a ética é um pilar do currículo. O curso inclui disciplinas como IA e sociedade, filosofia da tecnologia, direito e regulação da IA e conteúdos da área de cultura religiosa, com foco em dilemas contemporâneos
Na UFG, as discussões também são tratadas desde o início, na disciplina "computação e sociedade", que aborda privacidade, desigualdade digital e o papel político da tecnologia. Para o professor Soares, a universidade tem responsabilidade em formar profissionais críticos e conscientes.
"Fake news sempre existiram. A diferença é que agora a tecnologia deu escala e velocidade a esses fenômenos. Precisamos de profissionais no Brasil que entendam isso e não caiam em pânico moral", diz.
Ele também critica propostas de regulamentação que considera mal formuladas e feitas sob clima de medo. "Sem formação qualificada, a sociedade acaba sendo guiada pela desinformação."
Para Alex, as discussões éticas nunca estiveram separadas da prática técnica. "Muita gente acha que ética em IA é só sobre fake news ou robô falando bobagem. Mas a discussão real está no que fazemos com os dados sensíveis das pessoas, que estão por toda parte", afirma.
Segundo ele, os riscos surgem justamente quando os desenvolvedores ignoram o contexto social por trás dos modelos. "Não é a IA que é racista, são os dados que carregam os vieses humanos. E se a gente não tiver esse olhar crítico, vai só replicar injustiças com uma nova roupagem."
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