O Supremo precisa voltar à normalidade

Publicado em 20/09/2025, às 15h00

Flávio Gomes de Barros

Do jornal "O Estado de São Paulo":

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"O julgamento dos acusados de tramar um golpe de Estado para aferrar Jair Bolsonaro ao poder, a despeito de sua derrota nas urnas em 2022, pode representar não só um civilizado acerto de contas da democracia brasileira com seus inimigos recentes.

Este jornal espera que a conclusão da Ação Penal (AP) 2.668 também seja o marco de transição para uma nova fase do Supremo Tribunal Federal (STF) – que nada mais seria do que um retorno da Corte ao leito da normalidade institucional. Jurídica e simbolicamente, a punição exemplar dos eventuais condenados pela sedição encerrará o período mais turbulento da história constitucional inaugurada em 1988, no qual a sobrevivência do próprio Estado Democrático de Direito consagrado desde o preâmbulo da Constituição foi posta em xeque.

Não se deve minimizar a gravidade desse risco. Jamais, desde o fim da ditadura militar, o Brasil havia assistido a um ataque tão desabrido às instituições republicanas, com a tentativa deliberada de subverter a vontade popular expressa no voto. Bolsonaro esgarçou o sistema de freios e contrapesos, recorreu a expedientes típicos de regimes autoritários e tentou arrastar o País para o abismo social e político – com prováveis e severas consequências econômicas – exclusivamente porque, ora vejam, perdeu uma eleição limpa. Nesse contexto, coube ao STF a faina de defender a democracia contra agressões inauditas – processo em que, em nome de imperativos excepcionais, lançou mão muitas vezes de expedientes que ultrapassaram o que previam a lei e a Constituição.

Muitas dessas medidas excepcionais, se não todas, seriam inaceitáveis em condições normais. Colegiada ou monocraticamente, pela lavra do ministro Alexandre de Moraes, o STF determinou o cerceamento prévio da liberdade de expressão de investigados, impôs medidas cautelares questionáveis e conduziu inquéritos sob sigilo por tempo demasiadamente longo. Mas também é verdade que, se a Corte tivesse sido leniente diante do golpismo de Bolsonaro e sua grei, decerto o País estaria submetido hoje aos horrores de um Estado verdadeiramente de exceção.

Como já sublinhamos neste espaço, a condução dos inquéritos dos atos antidemocráticos e da AP 2.668, em linhas gerais, não foi imaculada, mas o STF acertou muito mais do que errou. Foi firme quando tantos outros foram tíbios. Resistiu a tremendas pressões e assumiu riscos não triviais para, ao fim e ao cabo, preservar o que mais importa: o regime de liberdade previsto na Constituição. A própria realização do julgamento ora em curso é a prova de que a República resistiu ao assalto autoritário. Os que se provarem golpistas serão condenados e punidos.

E é justamente porque a democracia venceu seus inimigos que o STF precisa reconhecer que a era de excepcionalidades contra o golpismo chegou ao fim. A preservação das instituições e das liberdades democráticas não mais depende de expedientes judiciais extraordinários. O desafio, agora, é outro: devolver a Corte ao leito da normalidade institucional, como de resto exige a Lei Maior.

Na prática, isso significa mais contenção decisória e sobriedade comportamental dos ministros. O STF não pode continuar a ser percebido como um ator político, a cada dia emitindo juízos e projeções sobre o futuro do País, sob pena de corroer a autoridade que lhe resta. Se nos últimos anos foi inevitável que os ministros ocupassem espaços que os políticos, por omissão, interesse direto ou conveniência, deixaram vagos, o movimento agora passa a ser de retração. Nesse sentido, não deixa de ser auspiciosa a mudança de ares na presidência da Corte. Edson Fachin, que toma posse este mês, é reconhecido por sua discrição, diferentemente do atual presidente, o loquaz ministro Luís Roberto Barroso – que não perdeu a chance de dar sua opinião política ao dizer que o julgamento dos golpistas vai 'encerrar os ciclos do atraso no País'.

No geral, o STF cumpriu bem seu dever na defesa da ordem constitucional democrática. Daqui em diante, sua grandeza está em saber recuar. Mais perigoso do que o golpe derrotado seria um Supremo que, inebriado pelo protagonismo, também se encantasse pela perspectiva de conservar poderes excepcionais e resistisse à ideia de regressar ao lugar que a Constituição lhe reserva."

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