Presas 60 dias em navio: a história das 2.850 vacas que devem chegar mortas ao destino

Publicado em 21/11/2025, às 13h24
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No dia 19 de setembro, mais de dois meses atrás, o decrépito navio Spiridon II, um velho cargueiro russo construído há mais de 50 anos — e mais tarde grosseiramente convertido para o transporte de animais —, deixou o porto de Montevidéu, no Uruguai, com destino à Turquia, levando 2 850 novilhas, vacas ainda jovens que seriam usadas para abate e produção de leite.

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Pouco mais de um mês depois, no dia 22 de outubro, ele chegou ao seu destino, o porto de Bandirma, mas não recebeu permissão das autoridades turcas para atracar e descarregar os animais, porque, pelo menos 500 deles apresentavam divergências entre as informações de origem e o que constava nos manifestos de carga do navio.

Começava ali uma novela que se arrasta até hoje, e o pavoroso sofrimento daqueles animais, trancados no interior de um navio fétido e insalubre — cujo mau cheiro já pode ser sentido a um quilômetro de distância — desde que teve início aquele martírio, mais de dois meses atrás — e que ainda vai durar outro mês inteiro, porque, neste momento, o Spiridon II está navegando de volta para o Uruguai, em uma jornada de mais 18 000 quilômetros de mar, a fim de devolver os animais.

Pelo menos aqueles que sobreviverem a esta nova e longa viagem.

Abortos em pleno mar

Na viagem de ida, mesmo sem nenhum contratempo, já haviam morrido cerca de 60 vacas, como estimado por entidades de bem-estar animal, com base em fotos que mostravam suspeitos sacos estocados no convés do navio, muito possivelmente com as carcaças das novilhas que não resistiram à viagem.

Além disso, como cerca de 800 delas estavam prenhes (já que isso estimula a produção de leite), mas apenas 50 bezerros recém-nascidos foram detectados quando o navio chegou à Turquia, os ativistas dos direitos animais arriscam dizer que os demais filhotes também tenham morrido na viagem, em abortos espontâneos causados pelas péssimas condições sanitárias a bordo do Spiridon II, ou na longa e cruel espera de 24 dias a que o navio foi submetido, quando chegou à Bandirma mas não pode desembarcar os animais.

Na ocasião, o capitão do Spiridon II recebeu ordens de aguardar, no mar, a solução para o problema, que por fim não aconteceu.

Isso decretou o retorno do navio ao seu porto de origem, para devolução dos animais, que é o que ele vem fazendo agora.

Mas o pior pode ainda estar por vir.

Pode não ser aceito nem de onde partiu

No dia 9 de novembro, quando ainda aguardava a permissão das autoridades turcas para desembarcar os animais, o Spiridon II recebeu autorização para atracar no porto por algumas horas, apenas para o embarque de suprimentos e rações para os bovinos.

Em seguida foi mandado de volta para o mar e por lá ficou, mais 15 dias.

Durante a breve parada dele no porto turco, relatos deram conta que, por causa do acúmulo de excrementos nos porões do navio, os níveis de amônia e outros gases gerados pelas fezes dos animais já tinham atingindo níveis inaceitáveis.

E isso — mais o acúmulo de novas carcaças de animais mortos, que certamente não suportarão a viagem de retorno — pode fazer com o que o navio seja proibido de atracar também no Uruguai, de onde havia partido, gerando uma crise sanitária e humanitária pior ainda.

Os ambientalistas também temem que, caso haja este risco, o dono da carga (a empresa uruguaia Ganosan Livestock) e o armador do navio (uma suspeita empresa sediada em Honduras, embora o Spiridon II navegue sob a bandeira de Togo, um país africano) optem por se livrar do problema, lançando todos os animais no mar, mesmo os que eventualmente sobrevivam a viagem de regresso, que está prevista para terminar só no dia 14 de dezembro — quando eles já estarão completando 90 dias trancados no interior do navio, em condições difíceis de imaginar.

Por isso, entidades uruguaias de bem estar animal já estão se mobilizando para pressionar o governo local para que não só permita o desembarque das novilhas sobreviventes, como as envie para um santuário animal, uma vez que elas já sofreram o bastante.

Mas, talvez, isso não aconteça.

Na última quarta-feira, o governo uruguaio informou à imprensa local que encorajou a empresa dona das novilhas a tentar vendê-las em algum porto no caminho, para que o Spiridon II não chegue à Montevidéu carregado de animais mortos ou sem um destino definido.

Mas isso é pouco provável que aconteça, porque, depois da negativa turca, praticamente nenhum país se interessará por aqueles animais.

Enquanto o navio ainda estava retido na Turquia, a empresa dona dos animais já havia tentado vender as novilhas para um frigorífico da Ucrânia, mas a negociação não foi adiante.

Com isso, o navio foi mandado de volta para o porto de onde partiu.

Turquia já devolveu navio brasileiro

Ironicamente, esta não foi a primeira vez que o governo turco impede a atracação de uma embarcação vinda da América do Sul, embora por motivos distintos.

Quatro anos atrás, o ex-porta-aviões brasileiro São Paulo, que fora vendido como sucata para um estaleiro turco e rebocado até a Turquia para o desmanche, foi proibido de entrar naquela país e mandado de volta ao Brasil, por supostamente conter uma quantidade de material tóxico a bordo superior à informada pelas autoridades brasileiras, o que gerou uma das mais infames ações já cometida pela Marinha do Brasil, que, por fim, decidiu afundar o navio no estado em que ele estava, quando o comprador desistiu do negócio.

"Catástrofe do bem-estar animal"

"Sob todos os aspectos, o que está acontecendo no Spiridon II é uma catástrofe de saúde e bem-estar animal", resume o diretor de políticas públicas da entidade protetora dos animais Mercy For Animals, George Sturaro.

"Ele virou um risco sanitário, porque, de tão precário, não tem veterinários a bordo nem câmaras frigoríficas, para estocar os animais mortos. E já está entupido de estrume, o que pode levar a tripulação a lançar aqueles dejetos no mar, embora isso seja proibido".

"O Spiridon II é um dos piores navios de transporte de animais vivos do mundo, e sua ficha corrida comprova isso", diz Sturaro.

170 irregularidades

Entre outras ocorrências, o Spiridon II já sofreu um incêndio em alto mar e nove detenções em diferentes portos, por mau estado.

Sua lista de deficiências soma 170 registros, o que seria inaceitável para qualquer navio, mas não para os que transportam animais vivos, geralmente quase sucatas, que são apenas adaptadas para isso, como é o caso do Spiridon II, um velho frequentador, também, dos portos brasileiros.

Desde janeiro de 2020, ele já esteve oito vezes no Brasil, embarcando bovinos no porto de Vila do Conde, em Barcarena, no Pará, o mesmo onde, em 2015, ocorreu o mais grave acidente marítimo envolvendo este polêmico tipo de transporte, hoje mundialmente contestado: o transporte de animais vivos para abate em outros países, o que gera um sofrimento desnecessário aos animais, por conta das longas viagens em navios quase sempre precários.

Naquela ocasião, o navio libanês MV Haidar virou e afundou no próprio porto, por falta de estabilidade, logo após concluir o embarque de cerca de 5 000 cabeças de gado, das quais pouquíssimas sobreviveram, tanto ao naufrágio quanto ao massacre que seguiu nas águas do porto, com a população da cidade caçando os animais para transformá-los em churrasco.

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