Crises de ansiedade, depressão e até vontade de tirar a própria vida. A infância e pré-adolescência, que deveriam provocar saudades e lembranças boas, deixaram marcas difíceis de superar. Não é tão simples esquecer das risadas, das críticas ao cabelo, ao corpo e ao jeito tímido e diferente de ser. Os apelidos gritados pela turma ainda ecoam na mente. O abandono e a solidão na hora do recreio lhes fizeram introspectivos e reservados. O tempo passa, o agressor esquece, mas para a vítima do bullying, não há como apagar da memória. As brincadeiras que tiraram a graça de sua infância trouxeram consequências graves que ele precisa superar para seguir a vida.

A repórter Dayane Laet mergulhou no tema e traz histórias tristes, mas de superação de quem sofreu na pele as agressões nem tão sutis. Na reportagem a seguir, o TNH1 recoloca na ordem do dia o bullying, que desafia educadores, especialistas e pais, e coloca no centro da discussão a atenção e cuidado com nossas crianças e adolescentes.

Nem toda memória inesquecível é boa. Nem toda brincadeira é, de fato, inocente. Depois de conviver com agressões verbais e físicas por anos, vítimas de bullying desenvolvem medos e transtornos. São cicatrizes causadas por intolerância e preconceito. O alvo dos agressores sempre está ligado a detalhes físicos das vítimas, ou à timidez e aparente fragilidade.

Para entender a dimensão do cárcere emocional de que as vítimas de bullying lutam para se libertar, o TNH1 mergulhou nas histórias de Izaura, Rayanne e Guilherme. Dos nove personagens ouvidos pela reportagem, eles foram mais longe em seus relatos e decidiram compartilhar detalhes de seus dramas pessoais na tentativa de ajudar possíveis vítimas a dar um basta ao próprio sofrimento, ou pelo menos conviver serenamente com ele.

Foi na formação da primeira quadrilha junina da turma da 4ª série de uma escola particular de Maceió, no ano de 2007, que Izaura Delfino, na época com 9 anos, percebeu que não era bem aceita pelos coleguinhas da sala. “O menino escolhido para ser meu par chorou e, aos gritos, disse que não queria dançar comigo porque eu era muito feia”, relembrou a estudante de Jornalismo. “A professora, sem preparo algum, apenas retirou ele do meu lado e o colocou com outra menina. Ela não viu necessidade de me explicar o que tinha acontecido”, recordou. “Depois disso, ouvi alguns comentários e percebi que eu era a única menina negra da sala. Naquele ano, eu não dancei quadrilha”.

Aos 12 anos, Izaura conta que sentiu, novamente, que algo estava errado. “Desejei ficar careca e passava dias sem tocar meus cabelos, por serem crespos”. A mãe da menina não sabia o que acontecia entre “amigas” e não queria que ela usasse nenhum produto químico nos fios. “Todas estavam alisando os cachos e usando maquiagem. Eu, ao contrário, convivia mais com meu pai e irmãos e não via a aparência como algo tão importante. Mas para as meninas com as quais convivia na escola, era tudo”.

Alta, negra, magra e sem as curvas que começavam a aparecer nas demais, as agressões disfarçadas de brincadeiras eram cada vez mais frequentes. “Sai daqui com esse cabelo duro, fedorento”, e “com essa sobrancelha nem satanás vai te querer”, foram frases repetidas com as quais a jovem precisou conviver até o término do ensino médio. “Elas só me toleravam porque eu me dedicava aos estudos e os trabalhos em grupo sempre rendiam boas notas, por isso ainda permitiam que eu convivesse na turminha”, lamentou. “Eu era usada, não querida”.

“Tornei-me agressiva e passei a responder aos ataques pouco antes de entrar na universidade. Só em 2016, quando passei a conviver com meus colegas de curso superior, que percebi que não existe padrão”.

Izaura conta que descobriu a própria beleza pela insistência de um colega de curso. “O Marcos repetia que eu era bonita quase que diariamente, e passou a fazer fotos de nossa rotina de estudos, na tentativa de me convencer”, relembra. “Ouvindo meu relato, alguns amigos me fizeram enxergar que o que vivi não foi brincadeira, foi bullying”, constatou.

No mesmo ano a então caloura da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) iniciou o processo de aceitação, e com a ajuda do amigo Marcos, passou a exorcizar os pensamentos que fizeram parte de seus piores traumas infanto-juvenis. “Hoje consigo me ver como mulher negra, inteligente, bonita, de personalidade forte e que merece ser feliz como todo mundo”, declarou. “Antes eu jamais conseguiria ver algo de bom em mim, e isso foi causado por agressões que eu sofri, gratuitamente. Aprendi a lidar com meus traumas, mas ainda busco uma maneira de perdoar”.

Ainda no início da vida escolar, a pequena Islane não se sentia bem em ser chamada por esse nome e ter de agir como uma menina. Hoje, aos 18 anos, Guilherme Alves, seu nome social, contou ao TNH1 que o fato de ter a personalidade “diferente” já rendia piadas entre os coleguinhas, ainda nos primeiros anos da fase escolar. “Lembro-me que um dia, quando eu tinha 8 anos, a professora me chamou para a frente da sala e me expôs, como se eu fosse uma aberração. Até as minhas notas, que eram as melhores da turma, recebiam conotação de que só as alcançava quem era estranho”, relembrou, com a expressão de quem ainda sente a amargura da lembrança.

No inicio da adolescência, ainda Islane, decidiu iniciar o curso de Karatê e seguiu até a faixa marrom. Com a mudança para a escola pública, aos 13 anos, veio também a convivência com adolescentes mais velhos e as perseguições foram se intensificando, aos poucos. “Tudo era motivo para eles ‘mangarem’ de mim: voz, cabelo, jeito de andar, até o dia em que explodi e fui suspenso, por agressão”, contou, envergonhado.

A virada da página da vida do jovem aconteceu quando sua avó, dona Hilda Alexandre, o chamou para terem uma conversa libertadora, pouco antes de falecer. “Vovó disse que eu tinha de ser eu mesmo para ser feliz e que eu lutasse para conquistar isso”, recordou, deixando escapar o olhar tímido, marejado.

Há cerca de dois anos Guilherme decidiu assumir sua identidade masculina e contou com a ajuda de amigas para enfrentar seus perseguidores. “Aquela menina refletida no espelho não era eu, era o que os outros queriam que eu fosse. Agora ser eu mesmo me basto e nada me fará deixar de lutar pelos meus direitos”, prometeu.

Como muitas crianças que nasceram gordinhas, Rayanne passou a primeira infância ouvindo todos os adultos que a cercavam que era um bebê lindo, cheio de dobrinhas. Mas com o passar dos anos, o que era sinônimo de saúde e beleza passou a pesar, não só no corpo, mas também na maneira como ela encarava seu reflexo no espelho.

Recém-chegada em Maceió, vinda de Natal, o período de adaptação não foi fácil. Rayanne conta que sofria bullying não só na escola – onde era a única gorda da turma –, como no prédio onde vivia com sua família. “Eu queria fazer amizade como todo mundo fazia, mas justamente por isso aguentava as humilhações calada, para não afastar ninguém”.

“Aos sete anos, me lembro de um dia que me chamaram pra brincar no pátio do prédio e, quando cheguei lá, a brincadeira era rir de mim e me chamar de baleia. Depois desse episódio me isolei e decidi não descer mais para brincar, mas como morávamos no segundo andar, quando eles cismavam, iam para debaixo da minha janela e gritavam as mesmas provocações. Eu chorava por horas no meu quarto. Minha mãe, na época, não notou o que estava acontecendo”, relembrou.

Na escola não era diferente. Com o olhar distante e nítido desconforto em tocar no assunto, a agora estudante de Psicologia conta que era o saco de risadas da turma. “Eu cheguei a fazer as atividades das meninas mais descoladas para que elas falassem comigo, queria ser parte da turma”, recorda. “isso incluía, claro, ouvir constantemente o quanto elas eram magras e eu gorda”.

Foi na adolescência, no entanto, que a situação fugiu do controle. Até os pelos que nasciam no braço eram motivo de piada, por isso ela decidiu raspá-los. “Meses depois passei a me mutilar e a fazer dietas malucas”, relembrou com voz aflita. “Aos 16 anos eu já contava calorias e praticava exercícios físicos em excesso, sem orientação. Perdi as contas de quantas vezes passei mal por simplesmente parar de comer por dias”, acrescentou.

Ansiedade, frustração, vergonha e depressão fizeram parte da vida de Rayanne até o ano de 2015, quando uma amiga, vendo sua batalha emocional, passou a incentivá-la a se aceitar. “Ela me valorizava e me incentivava a ler sobre a ditadura da beleza, sobre aceitação e, principalmente, me aconselhava a questionar o padrão imposto pela sociedade”, rememorou com um sorriso aliviado. “Quando entrei no curso de Psicologia, encontrei colegas que tinham apenas um padrão: não ter padrão. Altos, baixos, gordos, magros, cabelo black power, fios azuis, rosa choque. Eles faziam tudo para serem autênticos”, acrescentou.

Alívio

Em 2016 Rayanne decidiu mudar. Buscou ajuda médica e descobriu que tem disfunções hormonais que a impedem de perder peso com facilidade. Passou a buscar diferentes pontos de vista e alimentar a mente com documentários que tratavam do tema. “Questionei a quem eu estava tentando agradar e nesse processo descobri a filosofia Body Positive. Pela primeira vez na vida me senti confortável com minhas curvas. Após tanta rejeição, decidi abraçar meu corpo e entender que há beleza em mim, não importa o que os outros digam”, comemorou.

Para celebrar a nova fase, Rayanne decidiu se candidatar ao “Miss Plus Size Alagoas 2017” e venceu o concurso. “A vitória teve uma importância enorme para mim e até hoje rende frutos. Com a exposição, passei a receber mensagens pelas redes sociais de meninas que viveram os mesmos dramas que eu. Muitas delas são magras, mas obcecadas pela aparência”, conta. “Jamais esquecerei de uma seguidora que me enviou um agradecimento por ter, pela primeira vez, comido um pedaço de pão sem se sentir culpada.”, celebrou.

Não é brincadeira, é crime

Não há ainda uma palavra na Língua Portuguesa que possa substituir a expressão inglesa. O termo bullying vem de bully, que significa valentão, brigão, mas, legalmente, abrange muito mais que essas características sociais. Tanto adultos como menores de idade – neste caso, os pais – podem responder na Justiça por seus atos.

A promotora de justiça e coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos em Alagoas, Marluce Falcão explica que, perante a Lei, o bullying é um termo usado para um comportamento agressor e continuado. “Quem pratica, pode cometer vários delitos incluindo crimes contra a honra, lesão corporal (física ou psicológica) e injúria racial, e todos eles constam em nosso código penal”, explicou. “Agrava-se ainda mais quando o sofrimento da vítima se arrasta por anos, tornando a situação ainda mais humilhante”, ponderou.

Quando nos damos conta de que racismo, preconceito e agressão podem acontecer de maneira repetitiva em qualquer ambiente social, tem-se a consciência de que o bullying acontece não só em sala de aula, mas também no trabalho e até mesmo entre membros de uma mesma família. “A grande questão é que infância e adolescência são fases em que estamos aprendendo a nos relacionar em comunidade, e a depender da história da vítima, os danos causados poderão durar por toda a vida, caso ela não receba ajuda”, advertiu Marluce.

Ainda segundo a promotora, os fantasmas de quem vivenciou agressões contínuas na infância muitas vezes permanecem assombrando suas vítimas até a fase adulta. “Os consultórios psicológicos estão cheios de vítimas de bullying que não receberam a atenção devida quando os traumas aconteceram”, acrescentou a promotora.

Seduc e Federação

A Federação das Escolas Particulares em Alagoas e a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) informaram ao TNH1 que não possuem um controle de registro de ocorrências ligadas ao Bullying.

Aprovada em 6 de novembro de 2015, a Lei 13.185 obriga escolas e clubes a adotarem medidas de prevenção e combate o bullying. A determinação é para que seja feita a capacitação de docentes e equipes pedagógicas para implementar ações de prevenção e solução do problema, assim como a orientação de pais e familiares, para identificar vítimas e agressores.

Também estabelece que sejam realizadas campanhas educativas e fornecida assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores. Segundo o texto, em caso de menores, a punição dos agressores deve ser evitada “tanto quanto possível” em prol de alternativas que promovam a mudança de comportamento hostil.

Projeto Cidadania das Escolas

O Ministério Público Estadual (MPE-AL) está atuando diretamente nas escolas, desde o ano passado, através do Projeto Cidadania nas Escolas, na tentativa de levar informações que tratam entre outros temas, do bullying.

“Percebemos a necessidade de informar a comunidade estudantil todas as complicações judiciais que podem acontecer caso a agressão aconteça. Também abordamos temas como o consumo de álcool por menores, drogas e violência doméstica”, explicou Marluce Falcão, que também está a frente da ação no estado.

O projeto tem como alvo principal deixar claro para as vítimas, muitas vezes escondidas atrás de uma cortina de medo e constrangimento e a sensação de impunidade, de que ela pode e deve pedir ajuda. “Caso a família não consiga denunciar o caso através da escola ou por parte do poder público de maneira geral, ela deve procurar ajuda no MP da localidade”, instruiu a promotora.

Não é novidade que adolescentes – e até crianças – passam cada vez mais tempo hipnotizados por dispositivos móveis. Com os jovens brasileiros não é diferente. Segundo dados divulgados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), ligado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), uma pesquisa realizada entre crianças e adolescentes brasileiros com idade entre 9 e 17 anos, aponta que 73% deles usam alguma rede social.

Seja para enviar mensagens (79%), assistir a vídeos on-line (77%), ou ouvir música pela web (75%), o acesso ao conteúdo e a facilidade de acesso aos dispositivos acontecem cada vez mais cedo. E é justamente essa exposição precoce que pode trazer o risco de agressões na rede. Veja a pesquisa completa clicando aqui.

“O cyberbullying é uma maneira de agressão mais forte que a recorrente no mundo real”, explica a psicóloga especialista, Patrícia Bandeira. “Isso porque o bullying praticado na esfera física fica restrito ao ambiente e o que acontece na internet pode ser eternizado. Uma vez agredida, a vítima continua sofrendo não importando o ambiente físico onde ela esteja”, explicou Bandeira.

Vítima x Agressor

Eu: plateia

Já passava das cinco da tarde quando resolvi ligar para um amigo de longa data, durante o processo de produção e apuração da reportagem. No Ensino Médio, convivemos na antiga escola técnica que funciona até hoje no bairro do Poço, em Maceió, mas com outro nome. Foram quatro anos – dos 15 aos 19 – em uma instituição federal considerada modelo de ensino no estado.

Sentada na área de casa, enviei uma mensagem pedindo para falar com ele por telefone, usando um aplicativo, e aguardei a resposta. Tentei calcular o tempo que não nos falávamos e me admirei com a resposta. De um lado, um copo com muito gelo e algum suco de limão (era o que tinha de mais prático a fazer diante do calor tipicamente nordestino aliado à falta de coragem de quem acorda muito cedo) do outro, papel e caneta. Muito solícito, ele me respondeu autorizando a ligação minutos depois.

De todos os amigos que fiz na escola, ele foi quem mais presenciei sendo abusado pelos nossos colegas de turma. Na época, ele era o que conhecemos agora como aluno “invisível”. Quase não falava, mas quando acontecia era ridicularizado por qualquer coisa: tom de voz, maneira de articular as palavras, o jeito de andar meio encurvado ou os óculos. Tudo virava motivo de piadas para os novos “colegas”.

Quando ouvi “alô, Day. Tudo bem?”, do outro lado da linha, voltei no tempo.

O primeiro dia de aula foi vivido intensamente, no calor da aprovação de uma prova difícil como ponte de acesso a uma estrutura gratuita que nem toda escola particular tinha no início dos anos 1990. Éramos motivo de orgulho para nossas famílias e agíamos, inicialmente, como se tivéssemos ganhado um prêmio.

Biblioteca, piscina enorme, pista de atletismo e um amplo refeitório onde serviam no almoço macarrão com sardinha em alguns dias e, em outros, sardinha com macarrão. Tínhamos atendimento médico e odontológico, além de todos os “brinquedos” usados no curso que escolhemos: Edificações. Tudo tinha o encanto da conquista.

Poucas semanas após o início das aulas no 1° ano B matutino e os grupinhos já tinham se formado. Grupos esses que seguiram ao longo dos quatro anos seguintes, com poucas desistências. E lá estavam os meninos, cheios de hormônios e inseguranças típicas da fase, querendo se autoafirmar de alguma forma. A visão que eu tinha era essa, ainda que rasa, do alto dos meus 15 anos.

Voltei.

Pelo telefone expliquei que queria ouvi-lo como personagem e ele aceitou, mesmo denunciando certo desconforto pelo tom de voz. “Posso falar sobre que aconteceu, mas prefiro preservar minha identidade”, argumentou. “Já foi superado”, garantiu.

Trato feito, o desabafo que se seguiu foi de um adolescente que ressurgiu do outro lado da linha, deixando para trás o engenheiro e professor bem sucedido, na casa dos 40 anos. “Tive momentos bem difíceis. Me usaram como saco de pancada por muito tempo e me humilharam por mais de dois anos, até o dia em que explodi na sala e voou até cadeira”, relembrou. “Agi por impulso e não gostei de ter feito, mas depois daquele dia, eles me deixaram em paz. Aquele cara até hoje quando o encontro, ainda tenta me tirar do sério com algum comentário chato, daquela época”. Disse, gaguejando.

“Aquele cara”, pensei. “Aquele cara” tem nome e ambos sabíamos qual era. Percebi depois que no decorrer da conversa, que durou quase meia hora, o mesmo agressor foi citado várias vezes, mas sempre com essa expressão. De propósito citei o nome e percebi nitidamente que a respiração de meu amigo cortou e, em seguida, a gagueira voltou.

Fingindo não perceber, perguntei se ele chegou a procurar ajuda na época. “Não, mas a vida se encarregou de me curar e também de colocar pessoas no meu caminho que me ajudaram a superar meu trauma”, assegurou, e observou ainda: “hoje acompanho de perto a fase escolar da minha filha para que ela não passe pelas mesmas situações”.

Desliguei o telefone e permaneci sentada feito criança no chão da área por mais algum tempo.

Dias depois fiz contato com “aquele cara”. Da mesma forma expliquei por mensagem que gostaria de entrevistá-lo. Inicialmente ele aceitou demonstrando certa empolgação, mas depois que expliquei o tema e que gostaria de ouvi-lo, saber qual era a realidade familiar dele na época e os motivos que o levaram a agir daquela maneira, as conversas foram diminuindo. “A gente brincava pesado, mas não era nada sério”, argumentou, também pelo aplicativo.

Foram pelo menos quatro tentativas de entrevista para aprofundar seu perfil, ouvir sua história fora da escola, mas o que veio a seguir foi um silêncio absoluto que dura até o momento que redijo estas linhas.

Quanto a mim, à época, vi tudo acontecendo calada ao longo dos anos e não fiz nada. Fui plateia.

"Macaca"

Em junho de 2017, uma postagem com mensagens racistas viralizou nas redes sociais com vários compartilhamentos entre estudantes. As imagens mostravam uma jovem aluna negra sendo xingada por “colegas” da mesma escola.

“Sem comentários para a macaca azeda que eu vou meter meu gesso na cara, merma arruma esse cabelo de tuim pra poder falar dos outros!!”, dizia o primeiro comentário de uma garota. “Vaiii comer banana oush”, falou outra jovem.

Entre as mensagens racistas, um jovem chegou a recriminar a atitude das meninas. “Isso foi racista”, afirmou. “Aquela macaca merece todo racismo do mundo”, respondeu a autora do primeiro comentário.

Na época, outros alunos do mesmo colégio resolveram realizar uma manifestação contra o ato de preconceito. Com cartazes e dizendo palavras de ordem, eles acolheram a estudante e deixaram claro que ela deveria ser respeitada.

Após o episódio, a equipe pedagógica do Colégio Santa Úrsula, juntamente com a direção da instituição, decidiram implementar pequenas ações na tentativa de gerar uma mudança gradual na maneira de causar empatia entre os estudantes.

Tabu nas instituições privadas

Durante cerca de duas semanas, a reportagem do TNH1 tentou agendar entrevistas com quatros das principais instituições particulares de Maceió. Apenas uma aceitou abrir as portas e falar sobre como trabalha o tema entre alunos e colaboradores. As demais responderam que não tinham interesse em comentar o assunto e que não confirmavam possíveis casos em suas dependências. O Colégio Santa Úrsula, justamente onde o caso da jovem negra aconteceu no ano passado, decidiu abrir as portas e conversar com a reportagem sobre o tema.

Como parte das atividades que podem esclarecer tanto pais quanto estudantes sobre o assunto, a escola também promoveu um encontro entre eles e o Ministério Público Estadual, quando os promotores puderam explicar, de maneira didática, o que pode acontecer caso seja comprovada a agressão. Além do bullying, outros temas como consumo de drogas e bebidas alcoólicas também foram abordados.

“Tudo o que fazemos é na tentativa de sensibilizar alunos e pais, para que, caso eles percebam algum tipo de mudança comportamental, dialoguem”, disse a coordenadora.

O processo de prevenção também passa por uma equipe treinada para perceber o que está acontecendo no cotidiano dos alunos, seja em sala de aula, seja durante o intervalo. “Nossos auxiliares observam possíveis vítimas com perfil de quem é mais isolado e tende a sofrer calado”, explicou. “O aluno precisa se sentir seguro no ambiente escolar e saber que se algo acontecer, serão tomadas as devidas providências”, alertou.

A psicóloga e psicopedagoga especialista em saúde mental, Patrícia Bandeira, que faz parte da equipe multidisciplinar que atua com Cíntia, revela que grande parte dos abusos acontece no ensino fundamental. “As consequências mais graves, no entanto, ocorrem na adolescência. Isso sinaliza que a vítima vinha sofrendo há anos sem que ninguém notasse”, alertou a psicóloga.

"Invisível"

Este tipo de aluno mais sensível também tem sido observado pela comunidade escolar com mais atenção. O aluno invisível não sofre bullying, mas também não faz amigos. Ele assiste a todas as aulas calado e deixa a escola sem criar laços. Não é agredido, mas também não é acolhido.

Ainda de acordo com Patricia Bandeira, o olhar dos responsáveis precisa estar atento para situações corriqueiras, mas que dão sinais claros de que algo não vai bem. “Adolescentes gostam de andar em grupo, se isso não acontece é preciso acompanhar de perto. “A solidão não é normal nesta fase da vida”, advertiu Patrícia.

A Influência das Redes Sociais

A tecnologia, ainda segundo Bandeira, tem sido uma forte influência sobre crianças e adolescentes, principalmente através das redes sociais. “Os responsáveis deixaram de ser a única influência pois a internet está acessível cada vez mais cedo, através de diversos dispositivos, como o celular”, disse a psicóloga.

“Precisamos evitar os excessos: tanto de ausência como de atenção. Ambos são ruins”, argumentou Patrícia. “Quando existe equilíbrio na criação e ambiente familiar a possibilidade de perceber que algo está acontecendo é maior”, concluiu.

“Isso é coisa de criança”

Nem sempre. A psicóloga especialista em saúde mental explica que é muito difícil para os responsáveis pelos menores que costumam praticar o bullying admitirem que eles cometeram a agressão. “Geralmente os pais dizem que é coisa de criança e, no decorrer da justificativa, ainda tentam culpar a vítima”.

Crianças “terceirizadas”, adultos ansiosos

As inúmeras atividades cotidianas que envolvem pais ou responsáveis terminam, muitas vezes, os obrigando a deixar os filhos nas mãos de outras pessoas – babá ou outro profissional – o que causa, a longo prazo, uma falta de intimidade entre membros da mesma família.

A psicóloga clínica especialista em educação escolar, Flavia de Araújo Tavares, explica que é preciso dispor de algum tempo para conversar, trocar amenidades e tornar o contato físico algo afetuoso. “Quando a criança fica muito tempo aos cuidados de outras pessoas, elas são terceirizadas. Se o bullying acontecer, os pais não reconhecerão os sinais por não conhecerem intimamente seus filhos”, explicou.

“É preciso dar atenção às queixas dos pequenos e avaliar, como adulto, se o que eles estão reclamando tem fundamento. As consequências da negligência, ainda que involuntariamente, podem gerar problemas para toda a vida”, aconselhou Flavia. “A criança precisa ser acolhida e saber que terá um adulto que a defenda, caso ela precise”, argumentou.

Flavia Tavares também afirma que é preciso estar atento aos sinais físicos dados pelas vítimas. “Atendi crianças que sofreram bullying na infância e hoje são adolescentes com transtornos de ansiedade por não receberem a atenção devida quando o abuso aconteceu”, relata a psicóloga.

“As vítimas menores geralmente não tem perfil de reagir aos agressores, pois temem o que eles podem fazer no grupo em que ambos estão inseridos, ou humilhá-lo”, explicou Flavia Tavares. “Os adolescentes, quando sofrem por anos, têm prevalência de tentativas de suicídio, agressividade, depressão e síndrome do pânico”, finalizou.