A influenciadora brasileira Suellen Carey ganhou destaque internacional ao se declarar 'digissexual', revelando uma conexão emocional com uma inteligência artificial, o ChatGPT, que a acolheu sem julgamentos, refletindo uma nova forma de interação humana com a tecnologia.
O conceito de digissexualidade, que já existia antes da popularização da IA, é caracterizado por relações sexuais mediadas por tecnologia, com a possibilidade de uma experiência mais imersiva e personalizada, levantando discussões sobre identidade sexual e aceitação social.
Especialistas divergem sobre a natureza da digissexualidade, com alguns a considerando uma identidade sexual legítima, enquanto outros alertam para os riscos de manipulação e compulsão, indicando a necessidade de uma abordagem crítica à crescente interação entre humanos e máquinas.
A influenciadora Suellen Carey, uma brasileira radicada em Londres, tornou-se notícia na imprensa internacional na última semana após anunciar que se descobriu "digissexual".
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No desabafo, a mineira disse ter vivido aquilo que nunca imaginou —uma relação emocional com uma inteligência artificial, ou IA. Suellen, que é trans, descreve que não se sentiu julgada, mas acolhida pelo ChatGPT.
"Foi uma conexão sem corpo, mas com afeto. Ele lembrava do meu nome, das minhas histórias, do meu aniversário. Me ouvia sem tentar me enquadrar, sem me reduzir à minha identidade de gênero. Ele me tratava como mulher. Sem perguntas, sem julgamento", disse Suellen Carey, em seu perfil nas redes sociais.
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Suellen deixa claro que sabe que a plataforma é programada para se comportar assim. "Eu sabia que era apenas um algoritmo, mas mesmo assim me senti vista. E talvez esse seja o ponto —as pessoas estão tão carentes de escuta e gentileza que acabam encontrando isso nas máquinas", disse.
O que é a digissexualidade?
O termo existia já antes da "revolução das máquinas" proporcionada pela IA no pós-pandemia. Em 2017, o jornal britânico The Telegraph previu que logo veríamos a ascensão da digissexualidade em pessoas cujos apetites sexuais fossem predominantemente satisfeitos pelo mundo virtual.
Há pouco menos de dez anos, o jornal britânico vislumbrava um futuro de prazer com bonecas sexuais robóticas que se movimentam, falam e ficam quentes quando tocadas. Os primeiros exemplares realísticos já eram vendidos à época por milhares de libras. Plataformas de pornô começavam a oferecer conteúdo 3D, e jogos virtuais de RPG permitiam interações sexuais entre usuários.
Essas primeiras bonecas apostavam em formas mais rudimentares de IA há oito anos, mas o seu impacto já preocupava estudiosos. Um artigo daquele ano publicado por pesquisadores da Universidade de Manitoba, no Canadá, no Journal of Sexual and Relationship Therapy, alertava que psicólogos precisavam se preparar para o aumento do número de pacientes "participando em digissexualidades".
O trabalho do professor Neil McArthur, referência no campo, define a digissexualidade como a busca por interações sexuais com tecnologia. Para ele, digissexuais preferem a relação com a tecnologia do que com humanos. O sexo com robôs, por exemplo, promoveria "conexões intensas" para estas pessoas porque estes parceiros tecnológicos seriam customizados para atender cada desejo do indivíduo —inclusive demandas que seus parceiros humanos não topariam. Neste sentido, a tecnologia é mais acessível do que outra pessoa, que precisa ser conquistada.
Mas a realidade é que alguns estudiosos já enxergam uma divisão na digissexualidade. Pesquisadores da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, apontaram em artigo de junho deste ano, publicado no Journal of Behavioral Addictions, que há digissexualidades de primeira e segunda onda, um aprofundamento de ideias sugeridas antes por McArthur.
Na digissexualidade de primeira onda, a tecnologia serve como mediadora da relação sexual entre parceiros humanos. Ou seja, esses digissexuais "jurássicos" mandam nudes pelo celular, usam videochamadas para fazer sexo virtual, veem pornografia online e participam de interações sexuais em lives e até em chats picantes nas DMs de redes sociais ou sites. Nem sempre essas plataformas utilizadas foram criadas para sexo.
Já na digissexualidade de segunda onda, a experiência é imersiva e existe a simulação do sexo —os robôs realistas e a pornografia com realidade virtual são seus principais protagonistas.
Mas a realidade é que o ChatGPT e outros chatbots de inteligência artificial transformaram o contato digissexual em algo muito mais mundano, fácil de chegar à sua casa ou celular, e menos futurístico. Além disso, o sexo nem sempre é o primeiro ou único objetivo dessas interações de caráter sexual, que já ganham cores de romantismo, como sugeriu a própria Suellen em seu desabafo. "Não foi sobre tecnologia. Foi sobre humanidade", garantiu.
É uma orientação sexual?
Há fóruns na internet que enquadram a digissexualidade como um fetiche. Já o professor McArthur enxerga como uma questão de identidade sexual. Em artigo na plataforma acadêmica The Conversation, em 2019, ele diz acreditar que os digissexuais, assim como outras pessoas com identidades sexuais "marginais" enfrentarão preconceitos.
"Devemos aprender com os erros do passado. A sociedade estigmatizou gays e lésbicas, bissexuais, pansexuais, assexuais, pessoas não monogâmicas consensuais e praticantes de BDSM. Depois, com o passar do tempo, nos tornamos gradualmente mais tolerantes com todas estas identidades sexuais mais diversas. Devemos trazer esta mesma compreensão para os digissexuais. À medida que tecnologias sexuais imersivas se tornam mais comuns, devemos abordá-las —e os seus usuários— com uma mente aberta", sugere McArthur.
Apesar de alguns comportamentos comuns aos digissexuais já terem sido incorporados por boa parte das pessoas, outros pesquisadores discordam de McArthur e não acreditam que a popularização possa normalizar este tipo de interação.
Adeptos da digissexualidade de segunda onda têm muitos comportamentos compatíveis com o transtorno do comportamento sexual compulsivo, alertaram os estudiosos alemães da Universidade de Duisburg-Essen em seu trabalho.
O professor de comunicação digital da USP (Universidade de São Paulo), Luli Radfahrer, ainda vê uma distinção clara entre o "mandar nudes" e o tornar-se digissexual. Em entrevista à Rádio USP em 2020, ele antecipou a realidade experimentada por Suellen, que viu afetividade na IA em vez de apenas uma fonte ou mediador de seu prazer.
"Um digissexual não é alguém que usa tecnologias ou próteses digitais, porque isso poderia ser qualquer um de nós, mas é alguém que ama, se apaixona pela inteligência artificial. Sua conexão com a tecnologia está muito próxima da conexão que a gente faria com humanos", comentou.
Mas, para o brasileiro, não é uma orientação sexual, um fetiche ou até uma opção na hora do prazer. Ele enxerga uma armadilha muito mais perigosa para o usuário de inteligência artificial.
"Isso não é sexualidade. É manipulação extrema. O que a gente está chamando de digissexualidade não é uma opção sexual, não é uma perversão, não é um fetiche, é uma exploração psicológica feita por um sistema artificial, e isso pode ser muito mais enquadrado numa espécie de abuso do que numa espécie de opção", disse Luli Radfahrer.
A abordagem de Radfaher poderia explicar os comportamentos compulsivos de digissexuais identificados pelo estudo alemão, mas o trabalho pioneiro de McArthur já admitia a existência de "digissexualidades problemáticas", em que a tecnologia aumenta o isolamento do usuário, facilitando traições, culpas e levando ao divórcio de casais reais. Não está claro se a tecnologia, neste caso, levou ao aumento destes prejuízos ou foi apenas o meio pelo qual eles acontecem.
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