Libaneses 'roubam' seu próprio dinheiro de bancos sob a mira de armas e com latas de gasolina

Publicado em 06/12/2022, às 07h56
Foto: Reprodução/Redes Sociais
Foto: Reprodução/Redes Sociais

Por O Globo

Em janeiro passado, depois de manter reféns os funcionários de sua agência bancária por quase quatro horas sob a ameaça de uma pistola, dez litros de gasolina e um isqueiro, o libanês Abdala al-Saii recebeu de mãos trêmulas uma caixa de papelão com US$ 50 mil em espécie (cerca de R$ 264 mil) que não podia sacar de sua conta por causa da retenção pelos bancos das poupanças em moeda estrangeira vigente desde 2019.

— Eu disse ao funcionário: "Não estou roubando. Você tem de me entregar em mãos e retirar esse valor da minha conta." Ligaram para a sede em Beirute, que lhes disse que o sistema não permitia e que me passasse um recibo à mão. Respondi que não ia embora sem o recibo oficial. E assim foi — lembra ele, enquanto se reclina no sofá de sua casa na cidade de Kefraya, no Vale do Bekaa.

Al-Saii conta que, depois de viver 12 anos na Venezuela e na Colômbia, adquiriu uma loja de verduras e outra de bebidas em Kefraya, sua terra natal. Há um ano, uma delas foi assaltada, e, para repor os estoques, ele pediu ao banco um cheque de US$ 50 mil. Assim começaram as idas e vindas de ofertas e ameaças.

— Dois chefes de agências deixaram seu posto por mim. Uma vez, coloquei a arma que sempre carrego comigo no balcão e disse ao gerente: "Ou você me mostra o cofre ou eu te mato." Ele abriu e fiquei surpreso ao ver que não havia um único dólar ali — conta.

Semanas depois, irritado ao ver que clientes seus tinham dólares, al-Saii foi ao cemitério, pronunciou a fatiha (a primeira sura do Alcorão) em frente ao túmulo de sua mãe, pegou um isqueiro, colocou uma lata de nove litros e duas garrafinhas de gasolina em uma mochila grande e entrou no banco. Quando já não havia crianças dentro, ele abriu uma das garrafas e segurou o isqueiro aceso com a outra mão.

— "Agora vou fazer o cheque!", disse um funcionário. Eu respondi: "Não quero mais, agora quero meus US$ 50 mil em dinheiro" — conta.

Ele borrifou combustível nos computadores e trancou a porta com dois sofás. Seis funcionários e um segurança estavam lá dentro. Três horas depois, um deles ligou para a sede em Beirute e gritou: "Vocês estão negociando com nossas almas, vou abrir o cofre e dar o dinheiro!". Quinze minutos depois, ele recebeu luz verde para fazê-lo.

Al-Saii entregou o dinheiro à mulher, que o levou para casa sem ser presa. Ele, por outro lado, passou 17 dias na prisão.

— Estou pensando em repetir e encorajo as pessoas a fazerem o mesmo. Se alguém tiver um milhão no banco e me der permissão, farei isso por ele — diz ele, apesar de seu processo legal ainda estar em aberto.

A ação abriu caminho para outras em um país imerso em uma brutal crise econômica, agravada pela pandemia e pela explosão no porto de Beirute em 2020. É provavelmente uma das três piores crises no mundo desde meados do século XIX, segundo o Banco Mundial.

Desde então, cerca de 20 libaneses obtiveram seu dinheiro à força — muitas vezes para pagar contas hospitalares em um sistema de saúde altamente privatizado —, com apoio de uma população que, cansada e indignada, culpa os políticos e os bancos, que lucraram com uma espécie de esquema de pirâmide até que a seca de liquidez em dólares fosse exposta.

Hoje, 80% da população (6,8 milhões) está abaixo da linha da pobreza e a libra libanesa, a moeda local, perdeu 90% de seu valor, enquanto a paralisia política (não há presidente e o Parlamento está há oito sessões sem sucessor definido) dificulta aprovar as reformas exigidas pelo Fundo Monetário Internacional para desembolsar US$ 3 bilhões para o país pagar suas contas.

Do assalto ao acordo - Na semana passada, houve mais dois casos de "autorroubo". Na terça-feira, Edro Jodr, de 87 anos, ficou esperando com sua filha em Beirute até sacar US$ 5.500 para cobrir gastos médicos. Um dia mais tarde, em Shhiim, 40 km ao sul da capital, Walid Hajjar jogou gasolina na agência e ameaçou incendiá-la até que lhe dessem US$ 50 mil que devia pelo tratamento experimental de sua mulher, que tem câncer.

— Minha mãe está com muita dor, tomando morfina. E o que meu pai tem no banco é fruto de 30 anos de trabalho. Ele é açougueiro e era a melhor forma de poupar para a velhice e ter o dinheiro protegido, porque em casa podiam roubá-lo — explicava o filho de Hajjar, Ahmad, que mostrava as faturas do hospital.

Hajjar, que entrou no banco ao meio-dia, saiu à noite com US$ 42.500 e uma soma não revelada em libras libanesas. No caso que mais viralizou nas redes sociais, o jovem Sali Hafez saiu com a pistola em punho e US$ 13 mil para pagar o tratamento de câncer 

Os roteiros são semelhantes. A primeira exigência de dinheiro, com nervosismo e ameaças, se depara com um "não posso". Então, policiais e bombeiros tomam a entrada da agência bancária, com os militares perfilando-se a algumas dezenas de metros de distância. Horas depois, começam as ofertas por um valor menor e em moeda libanesa, a um câmbio bem menor do que na rua. À medida que aumentam o cansaço, a pressão e a vontade da polícia de acabar com a bagunça, a negociação passa a envolver cada vez mais dólares e menos libras, até que um acordo seja fechado.

Geralmente é um membro da família quem recebe o dinheiro. Quando o agressor se certifica de que a pessoa chegou em casa, ele se entrega à polícia. Eles o interrogam na delegacia, mas ele raramente passa mais do que alguns dias na prisão. Os bancos raramente apresentam mais acusações, cientes da rejeição que sofrem no país.

Fumando na gasolina - Bassam al-Sheikh Hussein conta que telefonou para sua mulher para explicar por que chegaria tarde em casa. Seu irmão lhe passou cigarros pela janela para que ele pudesse fumar em uma filial encharcada de gasolina.

— Eu sabia a que horas o diretor chegava, o que havia acontecido com a chave e onde estava o cofre. Enquanto isso, algo queimava cada vez mais dentro de mim — conta em sua casa em Ouzai, subúrbio pobre de Beirute, enquanto a mulher sorri e o filho de quatro anos adormece.

Em agosto, ele entrou com um fuzil e 20 litros de gasolina em um banco, forçou o diretor a abrir o cofre e o espancou quando ele lhe ofereceu apenas U$ 5 mil.

— Eu só queria meu dinheiro. Eu não pensei em mais nada. Eu sabia como entrar, mas não como sair. Não queria o dinheiro para o hospital do meu pai, que já estava pago com penhor de ouro e joias. Eu queria tudo — admite.

Ao todo, Hussein tem US$ 210 mil que ele atribui à venda de um apartamento. No final, ele se contentou com US$ 35 mil e a promessa de US$ 400 diários. Depois de cinco dias detido — em que, diz, os policiais o felicitaram por fazer o que apenas fantasiavam —, foi recebido em Ouzai com tiros comemorativos para o ar.

"Única forma de pressão" - Fuad Debs, advogado da Associação de Depositantes, um dos grupos surgidos no calor da crise e representante de cinco dos assaltantes, admite que o novo fenômeno "não é a solução", mas o considera "a única forma de pressionar as autoridades a realizar um plano de recuperação justo, transparente e global que inclua a reestruturação da dívida pública e do sistema bancário".

— É isso ou as pessoas ficam mais violentas — diz Debs, antes de especificar que 98% das contas (1,2 milhão) têm até US$ 500 mil.

Os assaltos transcendem a estrutura religiosa do país: al-Saii é sunita; al-Sheikh Hussein, xiita; e Cynthia Zarazir, uma cristã.

Esta última entrou em sua agência em outubro sem armas e saiu com US$ 8.500. Ela é uma das candidatas alternativas à elite política tradicional, herdeira da Zaura ("revolução" em árabe) de 2019, que conquistou uma cadeira nas eleições de maio passado. Aos 40 anos e com uma doença crônica, o médico instou-a a fazer uma operação de urgência. O seguro privado exigia um pagamento desse valor.

— A decisão foi muito rápida. Não tinha tempo. O médico me disse que em alguns dias já não seria muito seguro operar — conta ela. — Eles me disseram: "Nós ligamos de volta." Aí o diretor e um dos funcionários me respondiam coisas como "você está sonhando" ou "mesmo que você vá morrer, você não tem direito a esse dinheiro". Até a central de atendimento deixou de atender meu telefone.

Dez dias depois da consulta médica e depois de atrasar a operação por não poder pagar, Zarazir apresentou-se na agência bancária, anunciou a renúncia de sua imunidade parlamentar e entrou com o seu advogado.

— Eles me receberam muito bem, mas assim que eu disse que não iria embora sem meu dinheiro, o pânico começou. Eles dispararam o alarme, levaram as pessoas para fora... Eu disse: "Não estou armada, só vim com os documentos dos meus US$ 8.500, que é uma pequena parte da minha conta".

Pouco depois, ela saiu com o dinheiro e um documento de confidencialidade que havia assinado e rasgou assim que passou pela porta.

— Também foi um ato político contra o sistema que roubou nosso dinheiro. Todo mundo que precisa de dinheiro não deveria mais sofrer em benefício deste governo e dos bancos — diz.

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