MPF aciona União por ataques da Marinha à memória de João Cândido e pede R$ 5 milhões

Publicado em 21/12/2025, às 17h51
João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata - Foto: Reprodução
João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata - Foto: Reprodução

Por MPF

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil contra a União por danos morais coletivos, visando responsabilizar a Marinha por declarações consideradas ofensivas à memória de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, e busca impedir novos ataques ao seu legado histórico.

As manifestações da Marinha, que desqualificam a Revolta da Chibata e seu líder, violam a Constituição e tratados internacionais, segundo o MPF, que destaca a importância da anistia concedida a João Cândido como um dever do Estado de preservar a memória coletiva.

O MPF requer que a Justiça Federal condene a União a pagar R$ 5 milhões por danos morais, destinados a projetos de valorização da memória de João Cândido, e já havia recomendado à Marinha que se abstivesse de novas ofensas, mas recebeu resposta afirmando que suas declarações refletem apenas a perspectiva histórica da instituição.

Resumo gerado por IA

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União com o objetivo de responsabilizá-la por dano moral coletivo decorrente de manifestações oficiais da Marinha do Brasil consideradas ofensivas à memória de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata. A ação busca, além da reparação econômica, impedir novos atos que desabonem a trajetória e o legado histórico do marinheiro conhecido como “Almirante Negro”.

De acordo com o MPF, as manifestações da Marinha afrontam a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a Lei nº 11.756/2008, que concedeu anistia a João Cândido e aos demais participantes da revolta de 1910. Para o procurador adjunto dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Julio Araujo, que assina a ação, a anistia tem efeitos jurídicos e simbólicos concretos e impõe ao Estado o dever de respeitar e preservar a memória coletiva associada à luta pelo fim dos castigos físicos na Marinha.

Na ação, o MPF pede que a Justiça Federal declare a responsabilidade civil da União, determine que o poder público se abstenha de novas manifestações ofensivas à memória de João Cândido e condene a União ao pagamento de R$ 5 milhões por dano moral coletivo. O valor deverá ser destinado exclusivamente a projetos e ações voltados à valorização da memória do líder da Revolta da Chibata, conforme regras estabelecidas em resolução conjunta do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Inquérito – A ação tem como base elementos reunidos em inquérito civil instaurado a partir de demanda da sociedade civil para valorização da memória de João Cândido em âmbito nacional. O MPF sustenta que persistem práticas institucionais de ataque à imagem do líder da Revolta da Chibata, o que configuraria continuidade da perseguição histórica sofrida pelo marinheiro, inclusive após sua morte.

Entre os fatos destacados, está o envio, em abril de 2024, de carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, manifestando oposição ao projeto de lei que propõe a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. No documento, além de conferir tratamento adjetivado a seus líderes, a Revolta da Chibata é classificada como “deplorável página da história nacional” e “fato opróbio”, relegando, ainda, características negativas aos revoltosos. O mesmo entendimento foi reproduzido em documentos enviados ao MPF após recomendação do órgão.

As qualificações representam, segundo a ação, ataque direto à memória do anistiado e aos valores de justiça e igualdade reconhecidos pela legislação.

Diante dessas manifestações, o MPF expediu recomendação para que a Marinha se abstivesse de praticar atos que violassem a memória de João Cândido. A resposta oficial, no entanto, afirmou não haver providências a serem adotadas, sob o argumento de que as declarações refletiriam apenas a “perspectiva histórica” da instituição. Para o MPF, a posição indica intenção de manter discursos incompatíveis com a anistia legalmente concedida.

Direito à memória – Na ação, o MPF ressalta que o direito à memória é um direito assegurado na ordem constitucional, relacionado à dignidade da pessoa humana, ao direito à informação e à preservação do patrimônio histórico-cultural. O procurador destaca, ainda, que a proteção da memória de João Cândido está diretamente ligada ao enfrentamento do racismo estrutural e à valorização das lutas da população negra por cidadania e igualdade no Brasil, temas destacados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 973.

O MPF argumenta que as declarações oficiais da Marinha extrapolam os limites da liberdade de expressão, uma vez que partem de agentes públicos e contrariam normas constitucionais, legais e compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, além de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Segundo a ação, ao desqualificar João Cândido e a Revolta da Chibata, a União viola não apenas a memória do personagem histórico, mas o direito coletivo da sociedade de conhecer e interpretar sua própria história.

Revolta da Chibata – Os açoites haviam sido abolidos formalmente na Armada em 1889, porém, o Decreto 328, de 12 de abril de 1890, havia viabilizado a Companhia Correcional na Marinha, com vistas a combater pessoas “incorrigíveis e irrecuperáveis” no tribunal do convés, formado às margens dos tribunais legais. Na prática, jovens marinheiros, na sua maioria pretos e pobres, continuaram sendo vítimas dos castigos.

Na revolta, os marinheiros exigiram o fim das “chibatadas” e denunciaram as péssimas condições de trabalho e a falta de alimentação adequada. Em 22 de novembro de 1910, após receber 250 chibatadas, um dos marinheiros desmaiou, fazendo eclodir a revolta, liderada por João Cândido Felisberto. O movimento durou quatro dias e parou o Rio de Janeiro, levando o governo da época a negociar com os rebeldes. Após a revolta, os castigos físicos foram finalmente abolidos na Marinha.

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