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Pausa para a Leitura: Não era pra ser assim

Fernanda van der Laan* | 10/12/23 - 09h04
Fernanda van der Laan

Soneto de Maceió
 
O Mutange, onde a luz do farol semeia a esperança,
O pinheiro, às ruínas, sua sombra sempre alcança.
A injustiça, como um manto, aos montes avança,
E nas casas esquecidas, o futuro invade a lembrança.
 
A aurora traz um fardo, um triste renascer,
Onde outrora vida havia, só o vazio pode se ver.
Ecoam os passos, nas ruas de um triste desfazer,
Em cada canto, um lamento, um eterno não saber.
 
O amanhã traz a promessa de um novo recomeço,
De histórias não vividas, de caminhos sem tremor,
Em nome do todo poderoso, o tão sagrado endereço.
 
Guia das almas perdidas, para além do desespero e da dor,
Em um bom parto de esperanças, sob o pinheiro, o protetor,
Eterniza na cidade, um bebedouro seco de amor.

Eu me vi em ruínas. Literalmente. Tropecei em pedaços de vidas interrompidas. Não conseguiria viver em Maceió e desprezar que um pedaço importante da cidade afunda. Não moro nas adjacências do Pinheiro, mas estou ruindo também – assim como tudo neste lugar. E qualquer tipo de indiferença, em relação ao impacto da tragédia instalada em Maceió, é desatinada.

É aterradora a ideia de que bairros inteiros foram completamente evacuados. As casas, estes símbolos sagrados de segurança e proteção, estão à deriva da terra. As casas, estes sonhos máximos da materialidade, recompensas por trabalhos e suores, estão abandonadas e a mercê do tempo e do solo – intactas e destruídas.

Todos os lugares onde moramos estão intrinsicamente dentro de nós - pode-se expulsar as pessoas das suas moradas, mas não é possível retirar as casas de dentro de alguém. E eu fui, com todos meus endereços na bagagem, visitar o que restou dos restos das pessoas que foram obrigadas a irem para longe de bairros que insistem em balançar. Refletindo sobre as reverberações da tragédia em Maceió, encontrei-me perambulando entre ruínas que nunca serão físicas. A minha ida ao bairro do Pinheiro não foi um ato de heroísmo, mas um percurso doloroso e temeroso pelas entranhas de lugares desabitados e cheios de vida. Não é fácil invadir casas. Mesmo as vazias. Há uma sensação fortuita de violação – por mais que as portas estejam abertas e as janelas, estilhaçadas, sempre há um desconforto em adentrar um espaço que é, em essência, de alguém. A ausência palpável dos habitantes torna cada cômodo um relicário de emoções e memórias, vibrantes e coloridas, ainda que envoltas em cinzentos escombros. As casas, embora estruturalmente vazias, estão saturadas de histórias inacabadas. Os lares permanecem vivos, em meio a entulhos e recordações de famílias. Cada artefato e cada espaço narram silenciosamente as vidas que ali foram vividas e deixadas para trás. E eu me senti sem rumo ao pensar em todos os caminhos que aquelas pessoas precisaram percorrer para sair dali. Nestas horas, questionamos a vida e todos os desígnios do mundo. A injustiça bate e arromba portas e vidas. Sem aviso e nem condescendência.

Uma lingerie vermelha no chão de uma casa em cacos, cavalos presos dentro de um casarão com uma portinha por onde mal consigo passar. Restos de vida animal. Reminiscências irracionais. Arrombo absoluto de retina. Se eu quase não consegui entrar ali, como aqueles animais parecem tão ambientados? Dantesco e, acima de tudo, muito triste. Um quarto cheio de livros infantis. Alguém estudava ali. Uma gramática aberta - na página, metonímia. Oportuno. Meu coração ruiu. Lembravam os livros dos meus filhos – que jazem em uma casa inteira. Será que algum livro ou alguma criança está em paz num mundo que afunda? Quis chorar. Aquela casa era bonita. Havia uma boneca no chão que ostentava um sorriso insistente naquele lugar triste. Onde estarão as crianças? Será que ainda são crianças?

Depois outras casas e mais histórias interrompidas. Piscinas sem água, quadros de Santos, imagens, silêncios, restos e destroços. O Nada em meio a tudo que foi preciso abandonar. Por entre as frestas, imensidões.

A reflexão sobre minha própria morada, um refúgio presumivelmente seguro, suscitou questionamentos sobre a verdadeira natureza da segurança. A fragilidade de nossas estruturas físicas e emocionais se revelou, confrontando a ilusão de permanência e estabilidade. Nossos castelos são frágeis e inseguros.

A realidade do Pinheiro, com suas casas resistentes e destruídas, impôs a percepção de que, apesar das adversidades, elas continuam a encarnar o conceito de lar — imóveis na sua missão de abrigar sonhos e memórias, inalteráveis no coração de quem teve que partir. Esta experiência não se dissipou ao deixar o bairro, aquele dia. As casas, agora silenciosas em meus olhos, permanecem pulsantes de vida, seguem me assombrando com uma presença ausente e misteriosa. Elas simbolizam a resistência humana diante das intempéries, a fortaleza dos sentimentos que permeiam os espaços onde vivemos. Confrontadas com a iniquidade da existência e a intransigência da natureza, percebo que somos, em essência, semelhantes às estruturas que habitamos: vulneráveis, mas resilientes; temporários, mas significativos. A jornada pelas ruas desertas do bairro abandonado revelou mais do que a história das casas: desvelou a essência humana, a invisibilidade aparente daqueles que resistem, mais firmes que as próprias paredes que os cercavam. Neste contexto, percebe-se que nossas moradas são não apenas refúgio, mas museus vivos de nossas existências, narrativas imortais que resistem ao tempo, ao esquecimento e a morte. Ainda que as paredes se desfaçam, os sonhos e memórias que nelas habitam permanecem eternos, imunes à erosão do tempo e do esquecimento.

Nada nos separa na temeridade da terra que treme.

Caminhei por ruas vazias onde não fui vista e avistei tanta gente. E estas pessoas não são invisíveis – elas existem e resistem mais firmes do que as estruturas abandonadas e mais fortes do que as histórias desperdiçadas. E somos desabrigados, até que a sorte nos diga o contrário. Firmes sempre serão os sentimentos que invadem paredes e se instalam nos lugares onde vivemos com uma força misteriosa e inexorável. A resistência dos imóveis é símbolo da infinita força humana. E a vida não é justa. Redundância. Eu também li estas palavras na gramática jogada aos céus e sepultada em minha memória, para sempre.

Não há distinção. Estamos afundados nas nossas próprias lágrimas e na areia em que todos vamos nos transformar. Sustentamos sólidos impossíveis e ruímos em tremores imprevisíveis e sorrateiros que não tardarão em chegar. Nossas casas são nossos espelhos e, por mais vulneráveis que pareçam, refletem nossas histórias mais verdadeiras e permanecem intactas – enquanto nossos corpos perecem e esmorecem.

O tempo passa, derruba paredes, mas é incapaz de destruir os sonhos – imortais soberanos e detentores de todos os lugares impossíveis que duram e perduram para sempre nas memórias de quem nunca conseguirá partir.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima