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Pausa para a Leitura: Qual é o seu sonho?

POR FERNANDA VAN DER LAAN* | 12/11/23 - 09h00
Arquivo Pessoal

A manhã já foi completamente embora e Leonardo, meu menino, regressa da escola mais um dia. A casa sempre enche quando o Leo aparece. Enche de felicidade, enche de vida. Ele surge e uma alegria sem fim invade em mim. Até o gato, supostamente desprovido de um cérebro pensante, dá os ares da graça. As flores, supostamente destituídas de consciência, parecem adquirir um tom mais vívido e tudo o que é da alma aparenta ser matéria. Aqueles raros instantes de felicidade em que esquecemos das reais mazelas da vida sempre são com ele. E ele vem em minha direção, como todos os dias, e aperta minha mão. Ele sempre, quando entra ou quando sai de casa, aperta a minha mão – movimento obliterado da contemporaneidade e que ele, jovem decrépito do meu coração, tornou hábito. Ele nunca estreia uma refeição antes de ninguém. Nunca nega ajuda ou esquece de retribuir uma gentileza. Agradece tudo, ajuda sempre. Sabe a grandiosidade e a nobreza de pedir desculpas e assim o faz sempre que julga necessário – às vezes até com um rigor deveras exacerbado. Menino desprovido de sentimentos negativos – alegra-se genuinamente com conquistas alheias como se fossem as dele.

Respeita as pessoas, os animais e a natureza - sem distinção. É capaz de grandes gestos de desprendimento, compaixão e condescendência. E faz tudo isso sem vociferar. Sempre sei pelos outros. E eu sempre acho que tive muita sorte, mas não posso deixar de sentir um orgulho imenso deste ser em formação que não será nada além de muito feliz. Eu sei. Nunca pensei que as diretrizes da maternidade fossem tão controversas. Nunca fui uma mãe devidamente vocacionada, nunca fui uma mãe padronizada – mas talvez o compromisso com minha essência tenha sido o melhor caminho que poderia seguir.

Há longos e exaustivos tratados sobre a educação. Eu confesso que nunca consegui entender a aplicabilidade da teoria com a imprevisibilidade das contingências. As padronizações genéricas não parecem eficazes. Nunca consegui conciliar a educação normativa com as nuances peculiares da rotina. Como acertei? Posso dizer que nunca incuti em meu filho o cansativo desejo de vencer na vida. Ao contrário, ensinei a humildade e a consciência de nossa insignificância e de nossa transitoriedade. Evito enaltecer figuras públicas e coroadas. Há uma linha muito tênue entre líderes, reis, loucos, ditadores e beatificados. Sempre ressalto a grandiosidade e o heroísmo das pessoas comuns: dos professores, dos cientistas, dos operários, dos escravos, dos árabes e dos judeus, dos chineses, dos vikings, dos deficientes visuais, dos enfermos e dos indigentes. Oriento sempre que respeite e tema a autoridade, e que nada, absolutamente nada, justifica a violência. Incentivo profundamente que percorra o caminho do conhecimento – arma tão potente e rara - e que seguirá intacta, independentemente das circunstâncias. Aponto a ilusão das multidões e a importância da generosidade jesuítica – independentemente da impotência de nossos instintos gregários. E se ele entendeu isto não precisarei discorrer sobre os mandamentos bíblicos. A bondade será natural – e isso, misteriosamente, parece culminar com o sucesso que tantos projetam nos filhos.

E minhas divagações sobre educação são interrompidas com a presença de Leo em meu quarto. E ele aparece com aquele jeito que não é mais o de um menino, mas também não é o de um homem. Ainda detém alguma inocência das crianças, mas já emerge nos olhos algo bonito da maturidade – de uma maturidade profunda, que não é acessada pela maioria dos adultos destes tempos. Ingenuidade infantil com a sabedoria dos centenários, essa confluência interessante deste menino que chamo de filho. Há quem diga que parecemos irmãos. Certamente, é pelo fato de eu nunca ter atingido uma maturidade que é natural nele, com 14 anos.

E eu explico para ele que Leo não tem acento, afinal as paroxítonas terminadas em O não recebem o adorno gráfico. Ele tira nota máxima em Português e continua escrevendo o próprio nome errado. Dos fenômenos circunstanciais da modernidade: aprendemos o desprovido de utilidade e insistimos em tropeçar nas mesmas pedras, todos os dias. Deveríamos conhecer o caminho de casa. Entretanto, insistimos em aprender rotas para novas galáxias.

E entre as amenidades e as pequenezas dos diálogos corriqueiros entre uma mãe e um filho, inadvertidamente, eis que:

“Qual é o seu sonho?”

Hesitei, tropecei, titubeei. Usei um recurso para ganhar tempo. E devolvi:

- Sonho?

“Qual é o seu sonho?”

Falou um pouco mais alto. E eu fiquei ainda mais desnorteada. As minhas elocubrações todas pareciam tão infantis e elementares que não mereciam sair da minha cabeça, que parecia cada vez mais esvaziada. Não poderia responder com algum cliché. Não deveria ser simplista – muito menos prolixa. A resposta deveria estar engatilhada, a resposta mereceria vir como um tiro de pontaria: rápida e precisa. Sempre conheci os meus sonhos, mas há muito tempo não penso nisso. Senti vergonha do meu filho, cheio de grandes e fantásticos sonhos. Por onde andariam os meus? Preciso descobrir o que esqueci ou lembrar o que abandonei. O menino altivo que se importa com minhas quimeras perdidas. O Leo que chegou no mundo em mim. Até então eu não conhecera a coragem de ser outro e de nascer. O que era simbiótico adquirira vida própria – nossa despedida na misteriosa jornada de coexistir foi libertadora. Eu já não era mais a mesma e ele era uma pessoa independente e materializada. Ele nasceu e o mundo poderia sentir uma força absoluta que, até então, só eu conhecia. E encarnou na figura de meu filho.

Em superfície de tempo fora, aproximadamente, um minuto, mas em profundidade, séculos transcorreram-se em segundos: de uma reflexão que eu precisara ter. De súbito, descortinou-se em minha razão a verdade íntima de tudo. E liberto a mais simples e genuína resposta que poderia dar, para o insondável. Eis que, diante de meu interlocutor mais querido, a voz voltou. Forte como nunca. Acho que, secretamente, descobri o caminho para as novas galáxias. Esto brevis et placebis.

- Uma mãe não tem sonhos, Leo. Uma mãe tem filhos.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima