Do jornal "O Estado de São Paulo":
"O Brasil se acostumou a conviver, há muitos anos, com a tragédia cotidiana da violência no trânsito. Mas há alguns episódios que, de tão grotescos, tão carregados de absurdos e privilégios, destacam-se como uma espécie de síntese dos males estruturais deste país: o desprezo pela vida humana, o abuso de poder e o corporativismo que resiste em se submeter ao imperativo republicano fundamental, a igualdade de todos perante a lei. O caso do juiz aposentado Fernando Augusto Fontes Rodrigues Junior, de 61 anos, que atropelou e matou a ciclista Thais Bonatti, de apenas 30 anos, é um desses eventos singulares.
Na manhã do dia 24 passado, o sr. Rodrigues Junior dirigia sua caminhonete bêbado, conforme exame clínico de embriaguez realizado por um médico legista da Delegacia Seccional de Araçatuba, no interior de São Paulo. O exame era dispensável: de acordo com a Polícia Civil, o juiz apresentava fala desconexa, falta de coordenação motora e forte odor etílico quando foi abordado pelos agentes. Para piorar, o indigitado ainda guiava com uma mulher nua sentada em seu colo.
A inconsequência do juiz é estapafúrdia por si só, mas o caso é ainda mais revoltante pelo tratamento privilegiado conferido ao autor pela Polícia Civil paulista: o motorista foi inicialmente indiciado apenas por lesão corporal culposa – o que permitiu que ele fosse solto sob pagamento de fiança no valor de R$ 40 mil. De fato, a vítima estava viva no momento do registro da ocorrência, razão pela qual, por óbvio, não cabia tipificar o crime como homicídio naquela ocasião. Mas o dolo eventual estava mais do que bem caracterizado. Afinal, o que mais um sujeito precisaria fazer, além de estar embriagado ao volante e com uma pessoa adulta no colo, para que restasse evidente que assumiu o risco de machucar ou matar terceiros?
Eis a fossa abissal que, em mais de 130 anos de experiência republicana, separa os brasileiros comuns daqueles cidadãos que desfrutam de uma espécie de salvo-conduto para fazer o que bem entendem. Esse odioso crime expôs com tintas fortes o quadro de um Brasil que se esforça para fracassar como projeto de nação.
Fernando Rodrigues Junior é retrato do privilégio. Aposentou-se cedo no serviço público, aos 55 anos de idade, e recebe, entre salários e penduricalhos, vencimentos que ultrapassam em muito o teto constitucional, hoje fixado em R$ 46,3 mil. Só neste ano, o juiz aposentado recebeu, em média, cerca de R$ 130 mil por mês. Ou seja, freio moral não era mesmo com ele.
Pode-se argumentar que nem todo magistrado aposentado tem as taras do juiz em questão, mas todos os que como ele ganham acima do teto constitucional e estão em paz com suas consciências certamente se consideram acima dos demais mortais no País, aqueles para os quais as leis se aplicam na sua integralidade.
E o privilégio não se limita ao salário inconstitucional tornado “legal” por meio de hermenêutica finória da casta judicial. O tal magistrado, a despeito de sua gravíssima conduta, foi tratado com escandalosa condescendência pelo delegado responsável pelo caso, reproduzindo o padrão corporativista dessa casta.
A sociedade parece ter se habituado com a impunidade de quem provoca as tragédias diárias no trânsito. Mas o que dizer quando quem mata ao volante é justamente alguém que integrou o Judiciário e, portanto, foi aprovado pelo Estado como alguém digno de confiança e, ademais, dotado da temperança para exercer a judicatura? Se os valores que vêm com a toga – e que não se esvaem com a aposentadoria – não bastaram para impedir uma prática criminosa, tampouco podem servir de escudo para as consequências. Nesse sentido, a atuação do Ministério Público (MP) de São Paulo será determinante para que esse crime tenha o devido tratamento, assegurando a seu autor, naturalmente, todas as garantias do devido processo legal.
A memória de Thais Bonatti exige isso. A confiança da sociedade nas instituições republicanas, em particular no MP e no Judiciário, também.