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Quem foi Asperger, e a luta contra o uso do seu nome em uma síndrome

22/05/18 - 21h28
Reprodução

No início de maio de 2018, uma estudante de 11 anos deu início a um abaixo-assinado pedindo que o nome do médico austríaco Hans Asperger deixe de ser usado para se referir a uma das síndromes do espectro do autismo, com a qual ele próprio foi diagnosticado.

“Nós não queremos o nome ‘Asperger’ associado a nós. Hans Asperger abusou do seu poder como pediatra e mandou crianças não muito diferentes da gente para a morte. Tudo o que esse nome faz é carregar uma sentença de morte dada há mais de 70 anos.”

A petição, que em duas semanas alcançou mais de 30 mil assinaturas, pede que a National Autistic Society (organização britânica criada em 1962 voltada à defesa dos interesses das pessoas com transtorno de espectro autista) mude a terminologia usada para a chamada Síndrome de Asperger para Transtorno da Comunicação Social. A alteração seria uma “correção moral” e “justiça” para centenas de crianças que passaram pelo pediatra.

Em 2013, a APA (Associação Americana de Psiquiatria) excluiu o nome popularmente usado para a síndrome na nova edição DSM, o manual de diagnósticos de transtornos mentais elaborado pela entidade e largamente usado como referência pelos profissionais da área. O livro agrupou todos os diferentes diagnósticos dados a pessoas identificadas com dificuldades nas interações sociais ou de comunicação relevantes no termo transtorno de espectro do autismo.

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), uma em cada 160 crianças no mundo possui algum transtorno do tipo.

Revisão histórica

O pedido de renomeação da síndrome vem associado à publicação de um estudo, em 19 de abril, pelo historiador austríaco Herwig Czech; e ao lançamento do livro “Asperger"s Children: The Origins of Autism in Nazi Vienna” (“Crianças de Asperger: As origens do autismo na Viena nazista”, em tradução livre) da historiadora americana Edith Sheffer.

Ambos se debruçaram sobre documentos das décadas de 1930 e 1940 para colocar luz sobre o que se sabia e o que se ignorava a respeito do médico austríaco e suas pesquisas.

Hans Asperger nasceu em Viena, capital da Áustria, em 1906 e lá viveu e trabalhou como pediatra e professor até sua morte, em 1980. Durante sua carreira, tornou-se razoavelmente conhecido por suas pesquisas sobre transtornos mentais em crianças.

Suas descobertas foram recuperadas e ganharam repercussão entre psiquiatras, sobretudo na década de 1980, quando o termo Síndrome de Asperger passou a ser usado. Antes, Asperger usava a terminologia “psicopatia autista” para definir crianças que apresentavam “falta de empatia, pouca habilidade para fazer amigos, conversas unilaterais, abstração intensa em um interesse especial e movimentos desajeitados”.

Sob o nazismo

O diagnóstico médico sobre crianças com transtornos do tipo se tornou algo especialmente crítico na Áustria sob o domínio nazista, entre 1938 e 1945. Além de judeus e todos os demais grupos sociais perseguidos pelo regime nazista, pessoas com transtornos mentais também eram entendidas como uma ameaça à raça ariana e, por isso, mereciam ser eliminadas.

A época coincide com o período de estudos de Hans Asperger.

Dentre as descobertas feitas pelos historiadores em seus trabalhos recentes, está, por exemplo, o fato de que Asperger atuou de forma próxima às autoridades nazistas, tendo sido responsável pelo envio de crianças à clínica Am Spiegelgrund, onde quase 800 crianças foram mortas por não serem consideradas “dignas de viver”. O espaço hoje abriga um memorial às vítimas do período.

O envolvimento de Asperger nas práticas de eutanásia infantil protagonizadas por nazistas confronta a imagem do médico que se tinha até então.

O historiador Herwig Czech, autor da pesquisa recente, responsabiliza especialmente o trabalho da psicóloga britânica Uta Frith, autora de um livro de referência sobre Síndrome de Asperger, publicado em 1991, que mal cita o efeito do regime nazista sobre as pesquisas do pediatra austríaco. A obra, disse o jornal The Guardian citando Czech, “tem sido um instrumento na formação da visão comum de que Asperger ‘defendeu seus pacientes contra o regime nazista sob grande risco pessoal’, quando o caso foi o oposto”.

Horror e identidade

Se a atuação de Hans Asperger era conhecida, por que os relatos levantados pelos pesquisadores foram descobertos só agora? Mais: por que, mesmo com esse passado, Asperger foi homenageado dando seu nome a um transtorno mental?

Segundo a historiadora e autora do recente livro sobre Hans Asperger, Edith Sheffer, por ser “uma figura menor no programa” sistemático de eutanásia, apenas se sabia que Asperger havia feito a transferência de crianças para outras clínicas. “O que era uma prática comum na época, acho que não chamou atenção de ninguém”, disse ela ao site Vox.

Sheffer refuta a ideia de que Asperger fez o que fez porque foi obrigado. “Muito do que ele estava fazendo foi voluntário. Ele não precisava ter se associado àqueles homens. Ele não precisava estar naquele hospital que estava tão fortemente envolvido [no programa de eutanásia]”, disse. “O fato é: os homens com quem ele se associou estavam fazendo coisas piores, mas ele poderia ter feito bem mais [em prol dos pacientes]”.

A pesquisadora critica a Associação Americana de Psiquiatria por ter incluído o termo Síndrome de Asperger em uma edição anterior do seu manual. “Normalmente quando se cria um diagnóstico epônimo [quando se dá o nome de uma personalidade a algo], você deveria pesquisar o indivíduo que está emprestando o nome. Esse é o procedimento padrão, e eles não o fizeram. Agora nós estamos nesse dilema”, afirmou Sheffer. 

A historiadora diz que, ao pesquisar a história do pediatra, deparou com uma “história de terror”, fato que a motivou a escrever o livro e a abraçar a causa pela mudança do nome da síndrome epônima. Causa que é pessoal, no caso de Sheffer, cujo filho foi diagnosticado com o transtorno ainda criança.

“Eu não quero que o meu filho carregue o nome de alguém que mandou crianças como ele para a morte (...) Estamos nos tornando mais sensíveis sobre como queremos nos identificar e que valores queremos representar (...) A Associação Americana de Psiquiatria deu o primeiro passo certo ao reclassificar medicamente, e gerar consciência é um modo de fazer com que as pessoas parem de usar o nome.”

Ao jornal inglês The Guardian, a diretora da National Autistic Society, Carol Povey, disse esperar que todas as novas descobertas gerem um grande diálogo sobre pessoas com autismo, seus familiares e particularmente entre os que se identificam com o termo “Asperger”. “Obviamente ninguém com o diagnóstico da Síndrome de Asperger deve se sentir, de modo algum, contaminado por essa história perturbadora.”

Apesar disso, nesta terça-feira (22), a organização divulgou um questionário que busca saber como as pessoas se sentem em relação ao uso do termo Asperger, se ela deveria “reduzir” as referências a ele e pediu sugestões de um novo nome para sua revista “Asperger United”.