Nordeste

Após menino enviar carta, Justiça do Ceará reconhece sobrenome de padrasto como 2º pai

Defensoria Pública do Ceará | 22/03/24 - 15h41
Ângelo e Adilton na casa onde vivem, no sertão de Quixeramobim | Déborah Duarte / DPCE

Após atuação da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), a Justiça reconheceu o vínculo socioafetivo de Ângelo Ravel com o padrasto, o agricultor José Adilton. Assim, o garoto deixará de ser “apenas” enteado para ter o sobrenome, Moraes, e passar a ter todos os direitos de herdeiro legítimo do que o coração já dizia ser. Na certidão de nascimento, constará o nome de dois pais: o biológico, com quem não tem mais contato, e o dos afetos, com quem vive há sete anos. O caso foi divulgado pela DPCE no último dia 13 de março, após um pedido que veio do assentamento Santa Elisa, na comunidade Rancho, no sertão de Quixeramobim, no Ceará.

Adilton é companheiro de Teresa Cristina Nunes de Sousa, mãe de Ângelo, desde 2017, quando a criança tinha apenas quatro anos. “Eu também ser reconhecido como pai dele era uma coisa que ninguém acreditava que podia acontecer. Mas aconteceu. E eu tô muito feliz”, celebra o homem. “O coração fica mais tranquilo. Agora é dar entrada no novo documento”, acrescenta.

Ele lembra que o pedido para tudo isso acontecer partiu do próprio menino, cuja história popularizou-se após Ângelo, à época com oito anos, escrever uma carta a uma estação de rádio de Quixeramobim revelando o desejo de ter o sobrenome do padrasto. “Sempre foi meu sonho ter o sobrenome dele no meu documento porque pai é o que cria. E ele é meu pai. Então, isso estar acontecendo é uma alegria grande. Eu tô me sentindo feliz. Muito feliz”, admite o garoto.

Agora, vai celebrar dois aniversários de forma diferente. Em 19 de março, o homem chegará aos 35 anos com um novo filho. E seis dias depois, em 25 de março, o menino fará 11 anos ganhando de presente esse homem como segundo pai.

BUSCAS PELO PAI BIOLÓGICO - Após ganhar o mundo pelas ondas de rádio, a história foi parar nos balcões da Defensoria, que presta assistência jurídica à família desde o início do processo, em junho de 2021. Foram, portanto, dois anos e oito meses de espera entre o começo da ação judicial e a sentença do juiz, proferida no fim de fevereiro e agora disponibilizada, autorizando a inclusão do sobrenome de Adilson na certidão de Ângelo.

“A paternidade socioafetiva é um tema novo, que ainda não tem legislação específica determinando qual o rito a ser seguido. Para se resguardar, o juiz determinou que, antes de proferir a sentença, o pai biológico do Ângelo fosse procurado. E isso demandou tempo, porque ele não foi localizado nas primeiras diligências. Eu mesmo pedi acesso a vários sistemas e fiz buscas, até que o encontramos depois de alguns meses e ele passou a ter ciência da situação”, revela o defensor Jefferson Leite, que atuou no caso.

A tese da DPCE, de Adilton e Ângelo terem há anos uma relação socioafetiva de pai e filho, relatada por diversas pessoas ouvidas no processo, foi também reforçada em parecer favorável do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) ao reconhecimento do vínculo paternal. A justiça ainda pediu que o vínculo fosse endossado por um laudo elaborado por uma assistente social da Prefeitura de Quixeramobim, que visitou a família, conversou com as partes e entrevistou testemunhas.

“A inclusão do sobrenome do Adilton caracteriza a paternidade. Ele passa a ser pai do garoto, que terá legalmente duas filiações paternas. Lá na frente, quando for maior de idade, o próprio Ângelo vai decidir se quer manter assim ou se vai retirar o pai biológico. Neste momento, a opção foi solicitar apenas a inclusão do sobrenome do Adilton, sem retirar o sobrenome do pai biológico, porque o Ângelo é apenas uma criança. É importante ter cautela. Segundo a legislação, ele é uma pessoa em desenvolvimento e retirar o sobrenome do pai biológico significaria abrir mão de direitos sucessórios [herança], por exemplo. Então, agora, a decisão mais segura e racional, considerando os interesses da criança, é manter a dupla vinculação”, acrescenta o defensor Jefferson Leite.

SENTENÇA E FELICIDADE - Na decisão favorável a Adilton e Ângelo, o juiz Rogaciano Bezerra Leite Neto, da 2ª Vara de Quixeramobim, reforça a importância de garantir o melhor interesse do menino, e cita o reconhecimento da paternidade como necessário, pois é o agricultor quem atualmente garante ao garoto apoio material e moral, “essenciais para o seu pleno e sadio desenvolvimento.”

O magistrado afirma: “verifico que há uma relação íntima de afeto construída ao longo de considerável tempo de convivência familiar, na qual o Sr. José Adilton exerce, de fato, a figura paterna, prestando assistência material e afetiva à criança como se seu filho. Além do afeto, há o desejo de ambos – José Adilton e Ângelo – de ver reconhecida a paternidade socioafetiva, a fim de formalizar a situação já vivenciada no seio familiar.”

A mãe do garoto também celebra a conquista da família, composta ainda pelo caçula Moraes Neto, filho de Teresa com Adilton. “Eu ainda nem acredito que deu certo! Nunca pensei que existisse essa maneira de resolver [tendo dois pais na certidão]. Quando o Ângelo me pedia pra ter o sobrenome do Adilton, eu dizia que quando ele fosse maior de idade a gente iria atrás disso. Então, fiquei feliz demais com o resultado! Ele conseguiu realizar um sonho”, afirma Teresa Cristina.

Com a decisão judicial favorável e já averbada em cartório de registro civil de Quixeramobim, uma nova certidão de nascimento será emitida. Nela, o menino terá os dois pais. E tão importante quanto: será, enfim, Ângelo Ravel Nunes de Sousa Moraes.