Contextualizando

Arthur Lira e o governo Lula: “O presidente da Câmara não é um agregado, é um parceiro”

Em 30 de Abril de 2023 às 18:43

Jornalista Josias de Souza:

“Nada de mal acontece ao governo no Congresso que não seja esplêndido diante do que ainda está por acontecer. No momento, o presidente da Câmara, Arthur Lira, articula a primeira grande derrota legislativa de Lula.

Engatilhou a derrubada de um par de decretos editados pelo presidente para modificar o Marco do Saneamento Básico aprovado pelo Congresso e sancionado por Bolsonaro em 2020. O tiro seria disparado na última quarta-feira. Lira optou por conceder a Lula prazo de uma semana para recuar. O Planalto rediscute o tema. Mas ainda não esboçou a intenção de dar meia-volta.

O embate do saneamento ocorre contra um pano de fundo manchado por um antigo dejeto: a construção da governabilidade a partir do relacionamento financeiro promíscuo entre Executivo e Legislativo. Sob Lula, o Planalto opera para transferir do gabinete de Lira para os ministérios o gerenciamento da distribuição das emendas orçamentárias que compram o apoio dos parlamentares às iniciativas do governo.
Lira reage armando ciladas congressuais para Lula. Mimetiza o estilo do mentor Eduardo Cunha, o deputado que infernizou a gestão de Dilma Rousseff.
Os decretos de Lula presentearam Lira com a oportunidade de exercitar o fisiologismo manuseando uma causa nobre. O Marco do Saneamento Básico foi recebido como novidade benfazeja. Colocou a iniciativa privada num setor em que o Estado revelou-se historicamente ineficaz.
Há no Brasil cerca de 100 milhões de pessoas sem acesso à rede de esgoto. Algo como 35 milhões de brasileiros não dispõe de uma torneira com água potável em casa. Fixou-se a ambiciosa meta de universalizar o provimento de água e esgoto em dez anos.
A nova legislação do saneamento não extinguiu as companhias estaduais. Apenas estabeleceu regras que forçam os estados a se estruturar se quiserem disputar com grupos privados. Os decretos de Lula produziram subterfúgios que permitem às empresas estaduais assumir a prestação de serviço, sem licitação, a agrupamentos de municípios.
Lira chamou o arranjo de ‘absurdo retrocesso’. Reiterou sua contrariedade em entrevista publicada neste domingo pelo jornal O Globo.
‘Existem as questões do governo como, por exemplo, as alterações no Marco do Saneamento Básico por meio de decretos. O Congresso não aceita que uma lei seja alterada assim.’
Ficou entendido que, se quiser modificar uma legislação votada pelos parlamentares, Lula precisa enviar um novo projeto de lei ao Congresso, acionando sua maioria.
Na mesma entrevista, Lira fez questão de realçar que Lula ainda não dispõe de base congressual sólida. No início de março, antes do aniversário de 100 dias do governo, o presidente da Câmara já havia armado seus botes com a seguinte declaração:
“Teremos um tempo para que o governo se estabilize internamente, porque hoje o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara nem no Senado para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matérias de quórum constitucional”.
Decorridos quase dois meses, Lira agora diz coisas assim: “Qual é a realidade desta legislatura? Aprovamos a PEC da Transição, que foi votada no governo anterior, mas com gerência completa da equipe do Lula. Depois, houve uma acomodação e a formação de um governo de coalizão, com troca de ministérios por apoios, que está comprovado que não vai dar certo. As emendas [orçamentárias] resolvem isto sem ser necessário um ministério. Da forma como está, parlamentar fica com o pires na mão e um ministro, que não recebe votos e não faz concurso, é quem define a destinação de R$ 200 bilhões para municípios do Brasil.”
Do modo como se expressa, Lira parece sofrer com a abstinência do orçamento secreto, o mecanismo adotado sob Bolsonaro para terceirizar, sem transparência, a execução de quase R$ 20 bilhões da caixa registradora do Tesouro Nacional.
Condenadas, por inconstitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, as emendas sigilosas foram redistribuídas. Um pedaço foi destinado ao bolo de emendas individuais e de bancada. Outro naco, de cerca de R$ 9 bilhões, mudou de rubrica —RP9 virou RP2— e foi devolvido aos ministérios.
Os parlamentares continuam definindo para onde a verba deve ser enviada. Mas a fila agora não se forma na frente do gabinete de Lira, mas nos guichês da Esplanada.

“Eu sempre disse que o orçamento é muito mais democrático se decidido por 600 parlamentares do que por dez ministros”, afirmou Lira ao Globo.

“Me elegi sem RP-9 e tenho tido uma boa relação sem ela. Não interfere em nada na minha vida. Mas, na governabilidade, sim. Sabemos o que os partidos querem: favorecimento de obras e serviços públicos para aumentar o seu escopo político e atender as suas bases. O governo precisa se organizar, mais especificamente a Secretaria de Relações Institucionais.”

Chama-se Alexandre Padilha o ministro que comanda a Secretaria de Relações Institucionais. Responsável pela articulação política do governo, é ele quem gerencia, como preposto de Lula, o balcão de cargos e emendas. “Um sujeito fino e educado”, assoprou Lira, antes de morder: “Mas tem tido dificuldades. Não tem se refletido em uma relação de satisfação boa. Talvez a turma precise

descentralizar mais, confiar mais. Se você centraliza, prende muito. Há dificuldade, talvez pelo tempo que o PT passou fora do poder.”

Juntando-se todas as frases de Lira, o que ele disse, com outras palavras, foi mais ou menos o seguinte: 1) A aprovação da PEC da Transição, antes da posse, não avaliza a tese segundo a qual a governabilidade é fava contada. 2) O governo ainda não dispõe de votos para prevalecer no Congresso. 3) O velho toma lá de ministérios já não assegura o da cá no plenário da Câmara. 4) O viés conservador do Congresso anulou a pretensão de Lula de fazer o que lhe dá na telha, como em mandatos anteriores. 5) Sem a sua intermediação, a distribuição de emendas via ministérios tampouco

Lula e o PT apoiaram a recondução de Lira ao comando da Câmara no pressuposto de que receberiam reconhecimento e gratidão. Sucede algo diferente. Lira faz pose de benfeitor-geral da República, não do governo: “Trabalho para dar tranquilidade ao Brasil. Poderia ter sido eleito presidente da Câmara sem o PT, mas aceitei o apoio e não vou sacanear o governo. Não vou trabalhar contra nem atuar deliberadamente para prejudicar. Mas o presidente da Câmara não é um agregado, ele é um parceiro.”
A parceria inóspita de Lira não se resume ao Marco do Saneamento Básico. Há na Câmara um projeto para derrubar decretos antiarmamentistas de Lula. Num instante em que o presidente intensifica a demarcação de terras indígenas, Lira levou à pauta do plenário projeto sobre o marco temporal que inibe o reconhecimento do direito dos povos originários à posse dos seus territórios. Lira corre para se antecipar ao Supremo Tribunal Federal, que marcou para junho o julgamento sobre o marco temporal.
A atmosfera de chantagem é adensada pela usina de CPIs. Enquanto Lula e seus operadores molham o paletó para garantir maioria na CPI mista do Golpe, Lira colocou para andar uma CPI do MST. ‘Surgiram mais invasões à Embrapa e a terras produtivas de celulose, principalmente em estados onde o governo estadual é aliado do governo federal’, declarou Lira.
‘Qual é o risco de não darmos um freio nisso logo? É que a turma do campo está assustada e armada. Para acontecer um problema falta pouco. Integrantes do governo já refutaram as invasões, mas não houve medidas firmes para impedi-las. Então, vai ter CPI.’
Lira se equipa para acomodar no comando da CPI do Golpe o xará e aliado Arthur Maia. Desdenha da hipótese de que o desafeto alagoano Renan Calheiros assuma a presidência ou a relatoria da CPI com o apoio do governo.
‘Não tenho informação dele querer nem sei dessa vontade do governo. Mas o senador Renan, caso queira ser presidente da CPMI, precisará de votos. Para ser relator, precisará construir um acordo. Não depende do governo.’

Lira enxerga na CPI do golpe como palco para uma ‘guerra de narrativas’. Apresenta-se como fiel da balança. Atribuiu a adversidade a erros do Planalto. Não parece eximir Lula de responsabilidade.

‘O governo tentou derrubar, mas se tornou inevitável depois do vídeo do Gonçalves Dias’, declarou ele ao Globo. “A minha pergunta é o porquê deste vídeo não ter aparecido antes. Quem segurou as imagens e decretou sigilo? Como foi parar na mídia? Quem tinha acesso? Se foi o Gonçalves Dias, ele é o homem de confiança do Lula. Se foi o GSI, isto também precisará ser explicado.’
‘Garanto uma coisa: a pauta do plenário continuará sendo tocada normalmente.’ Por ora, a submissão da pauta às conveniências de Lira resultou em paralisia legislativa. Mas o benfeitor-geral distribui acenos ao mercado. ‘Vamos ajudar nas pautas, como no projeto do arcabouço fiscal. Tudo o que pudermos fazer para que o ambiente de negócios fique melhor, com menos juros e inflação, faremos. Depois teremos a reforma tributária. Essas são as metas até julho.’
Ao entrar no seu quinto mês de existência, o terceiro governo de Lula consolidou uma marca no Legislativo: a ineficiência. É perceptível o refinamento, o cuidado, o acabamento extremo e, sobretudo, o custo com que o governo atinge essa ineficiência. A aparência é de um parafuso rodando a esmo, com a rosca espanada.

Para dar certo, o governo precisa aprovar as reformas que prometeu. Esperava-se que fosse ágil, para aproveitar o vigor pós-eleitoral. Mas Lula retardou os planos do seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Supondo-se que o calendário de Lira possa ser levado a sério, as reformas econômicas serão votadas no Senado no segundo semestre. Nesta semana, a diretoria do Banco Central deve manter a taxa de juros rodando na casa dos 13,75% ao ano. Em público, Lula desferirá novas joelhadas em Roberto Campos Neto, o chefe do BC. Em privado, continuará se queixando de que Lira e as forças do atraso prejudicam o governo no Congresso. Trancos e queixumes servem como desculpa. Mas não resolvem os problemas.

Se os sinais de prosperidade não forem emitidos até o Natal, o brasileiro reclamará de Lula e do governo, não dos presidentes da Câmara e do Banco Central. Nessa hora, Lula talvez perceba que a falta de prosperidade é irmã siamesa da impopularidade.

Lira já não dispõe do apoio dos 464 deputados que o reconduziram ao comando da Câmara. Alguns preferem negociar diretamente com o governo. Mas o imperador da Câmara estruturou um bloco partidário que soma 173 votos. No final do ano, os integrantes desse bloco e seus assemelhados continuarão sendo um problema para o governo, só que bem mais caro.”

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