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Coaching é crime? Entenda o que está por trás desse debate

Folha Press | 24/06/19 - 19h51
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Já existe coach para quase tudo: carreira, relacionamento, sexo, finanças, emagrecimento e até bebês. Com alta oferta de profissionais e nenhuma regulamentação no setor, fica difícil separar quem é sério de quem não é. "Qualquer um se intitula coach de alguma coisa, e, aí, a gente tem um grande problema", afirma Marcus Baptista, vice-presidente no Brasil da ICF (International Coach Federation), entidade que atua em 145 países. A banalização da atividade tem gerado reações, desde ideias para regulamentar a carreira até para proibi-la.


Em apenas oito dias, uma proposta para criminalizar a prática, registrada na plataforma de participação popular do Senado, recebeu mais de 20 mil assinaturas -número necessário para ser encaminhada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Se aprovada, a sugestão pode virar projeto de lei. Segundo o texto, o objetivo é impedir "o charlatanismo de muitos autointitulados formados sem diploma válido" e "propagandas enganosas, como 'reprogramação do DNA' e 'cura quântica', que desrespeitam o trabalho científico e metódico de terapeutas e outros profissionais das mais variadas áreas".
O autor é o sergipano William Menezes, que tem apenas 17 anos e faz curso técnico em informática. O estudante diz que escolheu a palavra "criminalização" para o título da proposta como uma forma de chamar atenção para a falta de controle sobre a atuação do coach.


Para ele, é necessário enquadrar a prática dentro da lei, seja regulamentando ou criminalizando sua atuação. "Uma pessoa em exercício ilegal da profissão de psicólogo vai presa. Por que alguém que se autointitula coach não?", diz. O texto está sob a análise do relator, o senador Paulo Paim (PT-RS). Por meio de sua assessoria de imprensa, o parlamentar disse que, antes de apresentar seu relatório, vai fazer uma audiência pública com as partes e com a sociedade e chegar a um entendimento que seja bom para todos.


A ideia de criminalizar toda a categoria profissional gerou mais atenção e apoio do que outras propostas que discutem a prática do coaching. Na mesma plataforma do Senado, o portal e-Cidadania, há três sugestões para a regulamentação da carreira de coach. A que conta com maior apoio ainda não conseguiu 5.000 assinaturas.


Nos Estados Unidos, também se discute a ausência de regras no setor. O tema é pano de fundo, por exemplo, do seriado "Billions", produzido pelo canal Showtime e disponível na Netflix.  Nela, a psiquiatra Wendy Rhodes (Maggie Siff) atua como coach em uma empresa de investimentos, com o intuito de melhorar a performance dos funcionários (atenção, spoiler). Ao infringir limites éticos, ela fica sujeita a sanções do conselho de medicina, mas, como coach, sua atuação não é comprometida.

Na opinião do psicólogo Sigmar Malvezzi, professor da USP e da Fundação Dom Cabral, há de fato uma vulgarização da atividade, mas o caminho para resolver isso não passa pela regulamentação. "É difícil negar espaço a uma profissão que a cada dia se faz mais necessária", afirma. Para ele, o indivíduo hoje precisa de apoio para lidar com um mundo do trabalho mais precário, instável e volátil. "Na teoria, é fácil regular. Mas, na prática, com a pressão de mercado e a flexibilidade de um mundo sem fronteiras, é muito complicado." Uma saída, diz ele, seria fazer um acompanhamento do que acontece na área, estimulando pesquisas sobre o tema dentro das universidades.


Junto ao sucesso desse tipo de suporte ao indivíduo, surgiu uma indústria poderosa de formação de coaches, com escolas que seguem diferentes correntes teóricas e padrões de qualidade -algumas oferecem programas com duração de um fim de semana. "Existe uma propaganda enganosa de que é só fazer um curso para ganhar grana com uma atividade que ajuda as pessoas. Não é verdade, não é fácil conseguir cliente e, para ser bom, é necessário muito estudo e prática", diz Ana Luisa Pliopas, coach e professora da FGV (Fundação Getulio Vargas).


Para garantir a qualidade das escolas e dos profissionais da área, Marcus Baptista, da ICF, defende o controle do próprio setor, por meio de certificações. "Não somos contra ter uma regulamentação, pelo contrário. Mas oferecemos uma alternativa estruturada e robusta, que as empresas reconhecem", diz ele. Para receber o credenciamento básico da entidade, o coach precisa ter pelo menos 60 horas de formação específica, dez horas de mentoria, cem horas de experiência com no mínimo oito clientes, avaliação de desempenho em áudio e teste de conhecimento.

Não existe uma explicação única do que é o coaching. Segundo a ICF, a atividade é uma parceria estabelecida entre o coach e o cliente "em um processo instigante e criativo que o inspira a maximizar seu potencial pessoal e profissional". Não se trata de um aconselhamento de carreira, mas um processo que apoia o sujeito a desenvolver habilidades pontuais. A ideia é ajudá-lo a entender o que ele busca e o que precisa fazer para alcançar esse objetivo.

A diretora de marketing Fernanda Hermanny, 44, passou por três processos de coaching em diferentes épocas. No último deles, contratado pela empresa em que atua, buscou desenvolver o autoconhecimento e, assim, sentir-se mais segura. Durante um ano, fez sessões mensais com um coach, que já havia atuado como executivo de uma grande companhia. Gostou tanto que o contratou para mais oito sessões por conta própria. "Foi positivo. Me deu motivação e perspectiva de futuro, de como direcionar a minha carreira e de quais caminhos estou disposta a tomar."

Falta de qualificação pode trazer danos emocionais ao cliente

A atuação de um coach charlatão -ou mal preparado- pode trazer não só prejuízos financeiros ao cliente, mas também emocionais e psíquicos. Insatisfeita com seu emprego, a engenheira química Mariana Lopes, 30, contratou, em 2010, uma coach para ajudá-la a decidir qual carreira seguir. "Ela dizia que terapia focava o passado, era demorada e não dava resultado. Já o coaching olhava para o futuro", diz. Já nas primeiras sessões, Mariana afirma que se sentiu num processo de inquisição. Ela conta que a profissional fazia perguntas como "essa é a melhor forma de viver a sua vida?" ou "quando estiver com 70 anos, vai perdoar essa sua atitude de hoje?".


Segundo Mariana, a coach insistiu para que ela relembrasse, por meio de hipnose, situações difíceis que viveu no trabalho e durante um relacionamento abusivo. "Eu tinha problemas de ansiedade, mas estava controlada. As sessões fizeram com que as minhas crises voltassem", diz. A engenheira concluiu as 12 sessões que havia contratado por R$ 1.500, mas não quis renovar o serviço. "Precisei procurar uma psiquiatra e uma psicóloga, e essa, sim, me ajudou muito", conta.

Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, discursos que idealizam a força de vontade e colocam a culpa por fracassos no indivíduo podem mais atrapalhar do que ajudar. "Pode gerar aumento da culpabilidade e dos sintomas. Não é uma estratégia muito feliz do ponto psíquico." Ele também rebate a ideia de que a psicoterapia só trabalhe com o passado. "Há muitas formas que se orientam para o futuro. São as psicoterapias breves", diz.


A atuação indevida de coachs com pacientes com transtornos mentais, caso da depressão, também é motivo de preocupação para a Associação Brasileira de Psiquiatria. A entidade emitiu, em maio, uma nota na qual condena a propagação de tratamentos não científicos e diagnósticos errados feitos por profissionais sem formação adequada em saúde mental. "Esses profissionais, que se apresentam como coachs, podem causar diversos prejuízos, não apenas à sociedade, mas aos que se especializaram durante anos para oferecerem o melhor ao paciente", diz o documento.


De acordo com o advogado Igor Marchetti, do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o coach que tratar doenças psíquicas pode ser condenado por exercício ilegal da profissão, imperícia e charlatanismo.