Texto do jornalista Josias de Souza:
“Gilmar Mendes e Luiz Fux meteram-se numa toga justa ao bater boca durante o julgamento sobre juiz de garantias, na noite de quinta-feira. Atacado por engavetar o tema por três anos, Fux se disse admirado com a franqueza. E Gilmar: ‘Pode esperar durante o julgamento pela minha sinceridade’. Fux afirmou não ter ‘medo de sinceridade’. Fustigou: ‘Eu olho no olho. Vou falar a minha verdade até o fim’.
A sinceridade é uma virtude fictícia. A verdade absoluta é ainda mais incrível do que a ficção. Mas, ainda assim, a nação deveria suspender todos os seus outros negócios para dedicar atenção total à continuidade desse duelo. De um lado, a ‘sinceridade’ de Gilmar. Do outro, a ‘verdade’
de Fux. No centro, as gavetas do Supremo. O julgamento será retomado na quarta-feira. Reserve a pipoca.
Criada pelo Congresso em 2019, a figura do juiz de garantias teve a implantação suspensa por Fux em janeiro de 2020. Surgiu como reação ao ativismo da Lava Jato. Serviria para dividir o trabalho entre o juiz que conduz a produção de provas durante o inquérito e o juiz que profere as sentenças. Em tese, isso levaria a julgamentos mais isentos. Ou reforçaria a aparência de isenção.
Houve enorme polêmica. Ouviram-se argumentos respeitáveis contra e a favor do juiz de garantias. Ao Supremo caberia julgar a constitucionalidade da decisão do Legislativo, não engavetá-la. Na época, Gilmar disse que Fux deveria entregar as chaves do Congresso à então força-tarefa de Curitiba. Agora, afirma que não se pode suspender a aplicação de uma lei porque alguém teve ‘dor de barriga’.
Algo parecido aconteceu em abril de 2014. Julgava-se ação da OAB questionando a constitucionalidade da lei que permitia doações de empresas a campanhas políticas. O relator era Fux. Farejava-se uma maioria pela proibição do financiamento eleitoral privado. As barrigas dos dirigentes partidários entraram em ebulição. Gilmar pediu vista do processo. Engavetou-o por um ano e meio.
A ação da OAB contra as arcas eleitorais privadas chegara ao Supremo em 2011. Começou a ser julgada em 2013. Mas a proibição só veio em setembro de 2015, depois que Gilmar abriu sua gaveta. Por 8 votos a 3, o Supremo decidiu que o financiamento de campanhas por empresas afronta a Constituição. Voto vencido, Gilmar defendeu o engavetamento.
Se a decisão saísse no início de 2014, ele dizia, o Supremo teria que resolver se a proibição valeria para as eleições daquele ano. Temia a ‘insegurança jurídica’. Deu em Lava Jato, em Vaza Jato, em juiz de garantias…
A propósito, deve-se à gaveta de Gilmar também o título de juiz suspeito que o Supremo concedeu a Sergio Moro. Quando Moro, com a popularidade ainda reluzente, aceitou convite para integrar o ministério de Bolsonaro, o advogado Cristiano Zanin correu ao Supremo. Arguiu a suspeição do algoz de Lula.
O pedido começou a ser julgado na Segunda Turma da Corte em dezembro de 2018. Esboçava-se um placar pró-Moro. Gilmar pediu vista. Tirou o caso da gaveta mais de dois anos depois. Relator das encrencas de Curitiba, Edson Fachin anulou as condenações de Lula no pressuposto de que a ação contra o ex-juiz perderia o objeto. Levada a voto em março de 2021, quando Moro já era um ex-Moro, a suspeição prevaleceu por 3 a 2. Cármen Lúcia, que votara pelo arquivamento em 2018, mudou de lado, sacramentando o placar que Gilmar construiu com método.
Gavetas também fazem história.
Hoje, Moro é um senador com o mandato sub-judice, Zanin é o mais novo ministro do Supremo, Bolsonaro está na bica de se tornar inelegível, Lula desfruta do seu terceiro mandato presidencial e Gilmar tornou-se um crítico das gavetas dos outros. Escolheu um alvo conveniente, pois Fux é exímio engavetador. Segue um viés predominantemente corporativo.
Fux segura desde 2012, por exemplo, ação contra penduricalhos que engordam contracheques de juízes fluminenses. Manteve por quatro anos (entre 2014 e 2018) o auxílio-moradia ilegal aos juízes brasileiros.
Só revogou a liminar depois que o governo, sob Michel Temer, injetou a imoralidade nos contracheques dos magistrados.
A gaveta de Gilmar é mais, digamos, política. Para ficar no caso mais recente, Gilmar concedeu, em dobradinha com Dias Toffoli, um congelamento processual de mais de um ano a Flávio Bolsonaro.
Nesse intervalo, as provas gordas do caso da rachadinha foram desossadas. O Superior Tribunal de Justiça empurrou parte das evidências colecionadas contra Flávio para a cova. Em dezembro de 2021, a Segunda Turma do Supremo jogou terra em cima.
O relator foi Gilmar. Fachin divergiu. Mas ficou isolado. Votaram com Gilmar outras duas togas: Ricardo Lewandowski, agora substituído por Zanin, e o ministro-gorjeta Nunes Marques (10% de Bolsonaro no Supremo).
Há seis meses, a pretexto de conter o engavetamento indiscriminado, o Supremo ajustou o seu regimento para disciplinar os pedidos de vista. Manteve-se a prerrogativa dos ministros de interromper julgamentos para, supostamente, examinar determinada questão. Mas os processos serão automaticamente liberados para julgamento após um prazo de 90 dias. O prazo anterior era de 30 dias. E jamais foi respeitado.
Não há no Supremo ambiente mais fascinante do que a gaveta de alguns ministros. Hoje, aguardam na fila do plenário algo como 240 processos interrompidos por pedidos de vista.
Levado às últimas consequências, um bate-boca como o que opõe Gilmar e Fux poderia iluminar os porões de supremas escrivaninhas. Ninguém espera que a contenda resulte numa troca de socos. Mas a audiência da TV Justiça subiria se surgissem ao longo do julgamento sobre juiz de garantias boas frases, insultos mais elaborados, ironias mais finas, qualquer coisa que compensasse o custo da sessão.
Vivo, Cazuza diria que, nesse tipo de duelo, até as ‘mentiras sinceras me interessam’