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Espancado nu e 'alimentado' pelo ânus: preso relata tortura em prisão secreta da CIA

O Globo | 29/10/21 - 14h47
Majid Khan, preso de Guantánamo que relatou publicamente tortura sofrida por agentes da CIA | Foto: Center for Constitutional Rights

Um saudita que cresceu no Paquistão, estudou no ensino médio em Baltimore, nos Estados Unidos, e se tornou um mensageiro da al-Qaeda foi na quinta-feira o primeiro ex-prisioneiro dos centros de detenção secretos da CIA a descrever abertamente as violentas e cruéis "técnicas de interrogatório aprimoradas" que agentes usaram para extrair informações e confissões de suspeitos de terrorismo. Aos 41 anos, comparecendo a um tribunal aberto, Majid Khan relatou pela primeira vez a um júri militar detalhes de afogamentos, alimentações forçadas e outros abusos físicos e sexuais que sofreu durante sua período de detenção entre 2003 e 2006 na rede de prisões no exterior da CIA.

O caso de Khan ganhou destaque após o lançamento de um estudo de 2014 do programa da CIA feito pela Comissão de Inteligência do Senado que dizia que, depois que ele se recusou a comer, seus captores “injetaram” um purê de seu almoço pelo seu ânus. A CIA chamou isso de realimentação retal. Khan chamou de estupro. Por mais de duas horas, ele descreveu momentos humilhantes de nudez com apenas um capuz na cabeça, enquanto seus braços estavam acorrentados de maneira que o impossibilitavam de dormir, e sendo intencionalmente quase afogado em banheiras com água gelada. Em um desses episódios, segundo ele, um interrogador da CIA fazia uma contagem regressiva de 10 segundos antes de a água ser derramada em seu nariz e na sua boca.

Khan disse que, logo após ser capturado no Paquistão em março de 2003, ele cooperou com os captores, contando-lhes tudo o que sabia na esperança de ser libertado. — Em vez disso, quanto mais eu cooperava, mais era torturado — disse. No tribunal, oito militares americanos foram selecionados para servir no júri que irá emitir nesta sexta-feira a sentença oficial, que pode ser entre 25 e 40 anos, contando a partir da confissão de culpa de Khan em fevereiro de 2012. A sentença, no entanto, é amplamente simbólica — uma exigência dos militares. Sem o conhecimento dos jurados, Khan e seus advogados chegaram a um acordo secreto este ano com uma importante autoridade do Pentágono que permitirá que o detento seja liberado já em fevereiro ou, no cenário mais demorado, em fevereiro de 2025. Isso porque Khan se tornou um informante do governo após se declarar culpado.

Os jurados foram informados que, em 2012, Khan se declarou culpado de acusações de terrorismo, incluindo assassinatos que violam as leis de guerra, por entregar US$ 50 mil em dinheiro da al-Qaeda do Paquistão para uma afiliada do grupo no início de 2003. A quantia foi usada em um atentado a bomba em um hotel na Indonésia em agosto de 2003, que matou 12 pessoas, enquanto Khan era prisioneiro da CIA. O detento disse que não sabia como o dinheiro seria usado. Ele também admitiu ter tramado uma série de outros crimes com Khalid Sheikh Mohammed, que é suspeito de arquitetar os ataques de 11 de Setembro. Em um deles, em 2002, ele usou um colete-bomba em uma tentativa fracassada de assassinar o então presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, um aliado dos EUA na chamada "guerra ao terror".

A sentença foi adiada por quase uma década para dar a Khan tempo e oportunidades de cooperar com os promotores militares e federais em casos de terrorismo. Nos anos seguintes, promotores e advogados de defesa entraram em confronto em processos judiciais sobre quem seria chamado para testemunhar sobre os abusos de Khan sob custódia da CIA. Na quinta-feira, Khan leu um relato que não identificava os agentes da CIA ou os países e agências de inteligência estrangeiras que tiveram algum papel na sua detenção nas prisões secretas — informação que é protegida pelo tribunal de Guantánamo. Ele expressou remorso por magoar as pessoas ao aderir ao Islã radical e à al-Qaeda, mas, por outro lado, também encontrou uma maneira de de contar ao mundo o que os agentes dos EUA fizeram com ele.

— Para aqueles que me torturaram, eu os perdôo — disse, observando que, enquanto estava sob custódia, rejeitou a al-Qaeda, o terrorismo, “a violência e o ódio”. — Espero no dia do julgamento que Alá faça o mesmo por você e por mim. Peço perdão àqueles a quem prejudiquei e magoei. Ele foi espancado nu e passou longos períodos acorrentado — às vezes, a uma parede e agachado "como um cachorro", disse ele. Khan foi mantido na escuridão e arrastado, encapuzado e algemado, com sua cabeça batendo no chão, em paredes e em escadas enquanto era movido entre as celas.

Antes da CIA transferi-lo de uma prisão para outra, disse o detento, um médico fez um enema e depois o vestiu com uma fralda presa com fita adesiva para que ele não precisasse ir ao banheiro durante os voos. Relatos anteriores divulgados por seus advogados diziam que ele ficou tanto tempo sem dormir que começou a ter alucinações. Ele descreveu a experiência: imagens de uma vaca e um lagarto gigante avançando sobre ele dentro de uma cela enquanto estava acorrentado a uma viga acima de sua cabeça.

Procurada, a CIA se recusou a comentar as descrições dadas na audiência, mas pontuou que o seu programa de detenção e interrogatório terminou em 2009. O pai de Khan, Ali, e uma de suas irmãs, ambos cidadão americanos, estavam no tribunal, vendo-o pela primeira vez desde que ele deixou os EUA após os ataques de 11 de setembro de 2001. Eles estavam a 15 metros dele e não pareciam reconhecer o homem. Os advogados pediram permissão para trazer ao tribunal a mulher e a filha de Khan, que nasceu após sua captura, mas o comandante do Comando Sul dos EUA, que supervisiona as operações prisionais, se opôs. Como Khan, que adquiriu o status de residente permanente quando era jovem e morava nos Estados Unidos, mas nunca se tornou cidadão americano, sua mulher e filha também são cidadãs do Paquistão.