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Esperança Garcia: “Como uma mulher negra e escravizada se tornou a primeira advogada do Brasil”

Em 30 de Abril de 2023 às 15:09

Texto de Vitoria Pilar, na revista “Piauí”:

“Um pequeno grupo de bodes se assusta quando uma motocicleta acelerada corta a estrada de terra na comunidade quilombola de Algodões, localizada na cidade de Nazaré do Piauí, a 275 km de Teresina.   Sem calçamento, muros ou cercas, os animais correm soltos entre os quintais e os terreiros das quase 53 famílias que moram ali. Como quase todas as outras comunidades quilombolas da região, o lugar é emoldurado por pequenas casas levantadas com adobe cru — uma espécie de tijolo feito com uma mistura de terra e palha, que precisa ser pisada com os pés até dar o ponto. Quem precisa de atendimento médico, matricular as crianças nas escolas ou acessar qualquer serviço de assistência social tem que se deslocar para a zona urbana da cidade. Moradores estimam que o lugar tenha mais de duzentos anos. Ali funcionou a Fazenda de Algodões, uma propriedade rural que possuía o maior plantel de pessoas escravizadas da região. Com a Lei Áurea, elas deixaram as propriedades e ficaram vivendo em Algodões. Até hoje, porém, Algodões ainda não foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como área remanescente de quilombo.

Para quem não mora ou não nasceu na região, nada no lugar dá indícios de que lá viveu Esperança Garcia, uma mulher negra escravizada reconhecida como a primeira advogada do Brasil. Foi em 25 de novembro de 2022 que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) concedeu à piauiense o título que pertencia a Myrthes Gomes, que ingressou na advocacia em 1899. Mas uma carta assinada por Esperança e datada de 6 de setembro de 1770 mudou essa história.

O Dossiê Esperança Garcia, que pleiteou o reconhecimento junto à OAB, conta que Esperança era uma mulher negra escravizada, que teria aprendido a ler e escrever com padres jesuítas na fazenda Algodões. Anos depois, foi transferida para outro senhor, na fazenda Poções. Separada da família, viveu em meio a maus-tratos e abusos. Para pedir ajuda, escreveu de próprio punho uma carta contando sua situação e conseguiu que ela fosse enviada a Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, governador da então capitania do Piauí. Numa época em que as estratégias de resistência se traduzia em fugas, suicídios e assassinatos, Esperança desafiou o sistema vigente reivindicando aquilo que lhe era de direito segundo as leis do seu tempo.

Esperança sabia que a fazenda onde vivia estava sob catequese de missionários da Companhia de Jesus — e que pessoas escravizadas, indígenas e “agregados” deveriam ser batizados. Não clamou para deixar de ser uma pessoa escravizada, pois sabia que seria mais difícil, e rogou por direitos que a lei de então a assegurava: o batismo de uma filha.

Em uma carta de vinte linhas, escrita à mão, ela pede: “Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”

Ao escrever uma carta assinada com o seu nome, Esperança também fala em nome de outras mulheres que sofriam maus-tratos na fazenda. A confissão e o batismo, obrigações religiosas, apresentam-se como argumentos estratégicos para convencer as autoridades. Sem formação específica, Esperança escreveu um documento com elementos básicos de uma petição jurídica, contendo endereço, identificação, narrativa dos fatos, fundamento no direito vigente e um pedido. Ao recorrer a regras jurídicas e religiosas dos colonizadores, que concediam aos escravizados a possibilidade de constituir famílias e o batismo dos filhos nos preceitos católicos, ela evoca seus direitos enquanto religiosa. “É nesse momento que Esperança Garcia deixa entrever suas qualidades de intérprete da escravidão e do direito português”, destaca o dossiê entregue à OAB, e ao qual foi anexada uma foto da carta. O Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito resultou da pesquisa realizada pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI. Foi elaborado por um grupo de historiadores e juristas, presidido pela professora Maria Sueli Rodrigues, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), que morreu em julho de 2022, sem ver o reconhecimento nacional da advogada negra. “Mesmo na condição de escravizada, a aceitação do cristianismo e o reconhecimento da autoridade da Coroa portuguesa permitiriam uma série de vantagens, entre elas recorrer ao direito português nos casos de excessos dos senhores”, afirmam os autores no estudo.

Acredita-se que Esperança tinha 19 anos quando escreveu a carta, e até agora, não se encontrou qualquer indício de resposta por parte da Província de São José do Piauí. Demorou 209 anos para a carta ser reencontrada. Uma cópia foi descoberta pelo historiador Luiz Mott no Arquivo Público do Piauí, em Teresina, quando realizava sua pesquisa de mestrado em antropologia, em 1979. Junto com essa carta, uma outra, mais longa e de autoria desconhecida, relata detalhes da tirania do Capitão Antônio Vieira do Couto, o administrador da fazenda Poções. Essa segunda carta também descreve os maus-tratos contra pessoas negras escravizadas. “Todas as noites trabalham sem descanso algum, sendo preto velho e se moço tudo podia a sua mocidade suportar”, revela um trecho do segundo documento. E em outro trecho, essa segunda carta cita Esperança, dando indícios do destino que ela tomou: “Tirou uma escrava chamada Esperança, casada, da fazenda dos Algodões e não tem concedido tempo algum para a dita ir fazer vida com seu marido, vendo apertada com vários castigos tem fugido por várias vezes.”

Tempos depois, o nome de Esperança reaparece em uma relação de escravizados da Fazenda Algodões, o que dá mostras de que ela conseguiu voltar para o lugar. Na lista estão os nomes de Esperança e seu marido, Ignacio, ela com 27 anos, e ele com 57. A mesma lista ainda informa a existência de nove crianças no lugar, com idades entre 1 e 14 anos. Entre elas, uma menina chamada Paula, de 9 anos, e um menino Manoel, de 12 — a idade aproximada que teriam os filhos do casal. Mesmo sem confirmações, a história aponta que Esperança teria conseguido voltar para sua família.

Hoje em dia não se sabe o paradeiro da carta original de Esperança Garcia. Pesquisadores que montaram o dossiê buscaram o Arquivo Público do Piauí, o órgão responsável pela guarda da documentação de valor histórico, artístico e cultural produzida no estado, mas o local declarou a eles não saber o destino do documento. À piauí, a diretoria do órgão explicou que, durante a década de 1990, a carta foi cedida para exposições sobre a escravidão no Piauí. Foi entre uma exposição e o retorno ao prédio que o paradeiro da carta ficou impreciso. A diretora Rosângela Sousa disse que desde 2007, com o conhecimento da história de Esperança Garcia, a busca pela carta se intensificou. “Esse documento é procurado todos os dias no nosso acervo em uma caçada permanente. Todos os nossos especialistas estão capacitados para reconhecer a carta, mas pela quantidade gigantesca de documentos, é como encontrar uma agulha no palheiro”, explica Sousa. Uma outra teoria que circula na administração do Arquivo Público é que a versão encontrada no Piauí seja apenas uma cópia e que a original tenha sido levada para Portugal. Por enquanto, o que resta da carta é uma única fotografia, feita nos anos 1990 pelo historiador Paulo Gutemberg e anexada ao processo entregue pela Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra à OAB. O dossiê é ilustrado com a imagem de uma mulher negra, criada em 2015 pela ilustradora Valentina Fraiz e modificada ao longo do tempo. Outras versões, feitas por outros ilustradores e desenhistas, também circulam na internet e na academia. No entanto, pela época e pelo contexto em que viveu Esperança, não há indícios de nenhuma fotografia ou pintura que dê detalhes de como seria seu rosto…”

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