"Francisca da Silva de Souza, 72 anos, é aposentada, mora em Fortaleza e tenta se livrar de uma situação da qual diz ter sido vítima. A idosa afirma que foi usada como “laranja” de uma das associações investigadas na fraude do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), teve descontos não autorizados em sua aposentadoria e ainda passou a responder a um número incalculável de processos na Justiça por supostamente comandar a entidade.
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Francisca sabe assinar o nome, mas é analfabeta. Aposentada por idade, ela recebe um benefício líquido de R$ 900 por mês, faz serviços de manicure para complementar a renda, mas no papel é presidente da Associação dos Aposentados e Pensionistas Nacional (AAPEN), que arrecadou R$ 275,2 milhões em descontos do INSS desde 2019. Procurada, a associação não respondeu aos contatos da reportagem.
De acordo com as investigações da Policia Federal, da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Ministério Púbçico Federal (MPF), a entidade é suspeita de montar uma estrutura de fachada para fraudar as mensalidades e para tirar o dinheiro dos beneficiários ilegalmente. A PF suspeita de que o recurso tenha sido usado para pagamento de propina a servidores do INSS.
Francisca relata que, em setembro de 2023, assinou um papel para receber um empréstimo de R$ 1,5 mil. Só em 2025 ela percebeu que, na verdade, aquele papel a transformou em sócia da associação. A aposentada se deu conta de que estava na diretoria da entidade quando começou a receber cartas da Justiça para responder aos processos.
A idosa foi acionada na Justiça pela União — que pediu o bloqueio de bens dela e da associação — para ressarcir os aposentados lesados pelos descontos indevidos, por outros aposentados e pensionistas do INSS que foram vítimas da fraude e ainda por ex-funcionários da entidade em processos trabalhistas.
O bloqueio de bens foi autorizado pela Justiça. Francisca, porém, não tem patrimônio para ser usado no ressarcimento. Além de alegar não pertencer à associação, a idosa é uma das aposentadas que esperam o ressarcimento dos descontos feitos diretamente de seu benefício.
A Defensoria Pública do Ceará entrou na Justiça em favor da aposentada para excluir o vínculo da associação e permitir que ela possa se defender e se livrar dos demais processos. 'Estamos discutindo isso judicialmente para mostrar que ela entrou nessa associação sem nenhuma manifestação de vontade. Ela foi ludibriada, foi induzida ao erro', diz o defensor público do Ceará e supervisor do Núcleo Especializado no Atendimento à Pessoa Idosa, Daniel Leão Hitzschky Madeira, autor da ação.
'Resta evidente, portanto, que não se trata de presidente ou administradora de qualquer associação, mas sim de uma hipervulnerável enganada por pessoas inescrupulosas, assumindo em razão da sua falta de informação, a condição de ‘laranja’', diz a ação apresentada pela Defensoria Pública.
Quando os processos judicias começaram a chegar, Francisca procurou novamente os supostos advogados pedindo ajuda, mas eles se limitavam a pedir fotos dos documentos e prometer uma solução. 'Até que eles sumiram. Todos sumiram', diz o defensor público. A idosa também registrou um boletim de ocorrência na Polícia Civil denunciando o crime de estelionato.
Nos áudios anexos ao processo, é possível ouvir a idosa pedindo para ser desligada da associação após perceber a fraude. Uma das mensagens foi encaminhada a um homem identificado como 'Dr. Aleandro Queiroz', em junho deste ano:
'Eu falei já com três para segunda-feira nós ir para o cartório e eu assinar a minha saída, que eu não quero mais ficar aí de jeito nenhum, participar dessa enrolada que fizeram comigo, não. Que se eu soubesse que ia dar essa enrolada, todo dia tá chegando carta do juiz aí para mim, todo dia tá chegando, e eu não quero mais ficar aí de jeito nenhum.'
A AAPEN tinha um escritório em Fortaleza. A CGU visitou a sede da entidade em abril de 2024 e encontrou a estrutura funcionando, mas incompatível com a quantidade de 455.621 aposentados e pensionistas associados, residentes em 4.157 municípios nos 26 Estados e no Distrito Federal. O site mantido pela associação ficou fora do ar após a deflagração da Operação Sem Desconto, executada pela PF e pela CGU.
Não é a primeira vez que Francisca alega ter sido vítima de uma fraude envolvendo sua aposentadoria. Em outubro de 2024, ela entrou na Justiça contra o Banco BMG alegando que fez um empréstimo consignado na instituição, mas que, além das parcelas, estava sofrendo descontos pelo uso de um cartão de crédito que não solicitou. Isso causou descontos mensais de R$ 70,60 desde 2017, que totalizam R$ 4.390,12.
O BMG contesta a versão da aposentada. À reportagem, o banco disse que 'a contratação seguiu os procedimentos regulares, com apresentação de documentos e validação por imagem, sem indícios de irregularidades'.
Segundo o BMG, a aposentada realizou quatro operações de saque dentro do limite do cartão, o que confirmaria a utilização ativa do produto."
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