Contextualizando

Kotscho: “Carta a meu pai, que amava o Brasil e nunca perdia as esperanças”

Em 14 de Agosto de 2022 às 10:15

No Dia dos Pais. Interessante texto do jornalista Ricardo Kotscho:

“Nestes últimos dias, não sei bem por que, tenho pensado muito no meu pai, um refugiado da Segunda Guerra Mundial que amava o Brasil, país que adotou e pelo qual era apaixonado. Para ele, não havia país melhor no mundo.

Deve ser por causa do Dia dos Pais, celebrado neste domingo, mas não só por isso, pois já tinha me habituado a viver sem ele, desde 1960, quando morreu de câncer, aos 38 anos, muito contra a vontade, porque adorava viver.

A vida para ele era uma festa permanente. Levava sempre os amigos para casa depois do trabalho, botava um disco na vitrola, abria um vinho e ficava conversando até tarde da noite, dando muitas gargalhadas.

Depois do que passara naqueles anos de guerra na Europa, o Brasil era o paraíso sobre a terra. A cada dia, chegava em casa com uma nova descoberta, um novo amigo, novos planos.

De repente, um tiro, a morte de Getúlio, o pau quebrando no Rio de Janeiro, a ameaça de um golpe militar, e mudava tudo.

Pouco tempo antes, o próprio Getúlio tinha assinado o seu processo de naturalização, agora um cidadão brasileiro de verdade, como ele contava com orgulho ao mostrar seus novos documentos (no ano seguinte, o novo presidente, Café Filho, assinaria a naturalização da dona Beth, minha mãe).

Engenheiro de obras, o seu Nick, como todos chamavam meu pai, vivia viajando pelo país. Participou da construção de usinas de açúcar e hidrelétricas, do oleoduto de Cubatão e de um monte de fábricas, e só não esteve na inauguração de Brasília porque morreu naquele ano.

Era um grande aventureiro, o oposto de minha mãe, que gostava de ficar em casa fazendo comida para a família (com o tempo, outros parentes foram chegando da Europa no pós-guerra).

Acho que o pai gostaria de saber que o filho mais velho, o primeiro da família a nascer no Brasil, virou jornalista e também passaria a vida viajando, descobrindo as belezas e agruras do nosso país, que sempre nos surpreende (assim como aconteceu com meu único irmão, Ronaldo, fotógrafo e repórter de esportes).

Se me encontrasse com ele amanhã, não saberia nem por onde começar a lhe contar as histórias sobre o que aconteceu com a gente nestes 68 anos depois que ele nos deixou, tão cedo.

Nunca senti tanta falta dele como agora, que também não sabemos o que vai acontecer com o país nos próximos dias, meses e anos, para partilhar minhas angústias diante do desconhecido, desta encruzilhada em que nos encontramos, com o Brasil virado de pernas para o ar, assobiando e plantando bananeira para espanto do mundo, que tanto nos admirava, até outro dia ainda. O que fizemos de nós? Que mal fizemos para merecer urucubaca?

Não saberia lhe explicar como chegamos a esse ponto em que, como em 1954, após o suicídio de Getúlio, as pessoas se perguntam a toda hora se vai ter golpe ou se a nossa jovem democracia sobreviverá a tanta afronta. Seu Nick não reconheceria mais esse Brasil que ele tanto amou e lhe deu os anos mais felizes da sua vida. Ainda bem que pode levar boas lembranças.

Nestas voltas que a vida dá, parece que giramos em círculo, voltando sempre ao mesmo ponto de partida.

Me faz falta, principalmente, o otimismo dele, sempre achando que no fim tudo vai dar certo. Nunca perdia as esperanças, mesmo quando a sua doença se agravava, impedindo-o de viajar para ver suas obras. Vivia cada dia como se fosse o último, como se pressentisse o fim próximo, e quase não falava dos tempos da guerra. Não gastava tempo com medos e tristezas. Bons tempos, aqueles.

Feliz dia, pai. Vida que segue.”

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