Cinema

4 anos depois, como o Movimento Me Too mudou a indústria cinematográfica

Revista Glamour | 23/11/21 - 23h12
Reprodução

Após quase quatro anos fora das telas, o ator Kevin Spacey deve retornar aos cinemas como personagem coadjuvante no filme italiano L’uomo che disegno dio (O Homem Que Desenhou Deus), dirigido por Franco Nero. O hiato forçado é fruto de um importante evento na história do cinema: em outubro de 2017 o jornal The New York Times publicava reportagens que denunciavam casos de assédio e abuso sexual em Hollywood, praticados por alguns dos mais importantes nomes da indústria do cinema e entretenimento. O ex-produtor de cinema Harvey Weinstein, hoje com 52 anos, foi o primeiro nome a se tornar centro das acusações e ver sua carreira se encerrar por conta disso. Weinstein é o nome por trás de clássicos como Gênio Indomável (1997), Shakespeare Apaixonado (1998) e O Senhor dos Anéis (2001), além de ter construído uma bem-sucedida parceria com o diretor Quentin Tarantino em Pulp Fiction (1994), Kill Bill 1 e 2 (2001 e 2004), Bastardos Inglórios (2009), Django Livre (2012) e outros. Ele foi demitido da própria empresa e expulso da Academia de Artes Cinematográficas, além de ter sido condenado a 23 anos de prisão. Mais de 80 mulheres o apontaram como autor de algum tipo de má conduta sexual.

Pouco depois dele, vieram à tona histórias sobre Spacey, que na época estrelava a série House of Cards, da Netflix, uma de suas primeiras e mais aclamadas produções originais, e gravava o filme Todo Dinheiro Do Mundo (2017). Ele foi acusado primeiramente pelo ator Anthony Rapp, que diz ter sido abusado quando tinha apenas 14 anos, em 1980. Depois disso, surgiram outras denúncias sobre Spacey ser uma espécie de predador sexual nos bastidores de suas produções. A Sony Pictures, responsável pelo filme, optou por regravá-lo inteiramente, substituindo Spacey em todas as cenas pelo veterano Christopher Plummer. O fato é, até hoje, quase inédito. Um dos poucos casos conhecidos sobre a troca de um protagonista em um longa é o de De Volta Pro Futuro (1985), com Eric Stoltz substituído por Michael J. Fox, que acabou se consagrando no papel do jovem adolescente Marty McFly. O motivo, no entanto, não era nenhuma polêmica: a produção simplesmente preferia Fox.
O comediante Louis C.K., um dos mais famosos do mundo, também foi acusado em 2017 por cinco mulheres de assédio sexual. Elas afirmaram que ele já teria pedido para se masturbar na frente delas. Apesar de ter admitido que elas diziam a verdade, C.K. costuma fazer piada sobre o tema em seus stand-ups, constantemente se colocando na posição de vítima. Bill Cosby, também ator e comediante estadunidense, chegou a ser preso por abuso sexual, mas foi solto em junho. Ele foi alvo de diversas acusações de crimes como estupro, agressão, assédio e abuso de menores desde a década de 60.

No Brasil, outro caso também ganhava notoriedade em 2017, porque mirava um dos atores mais consagrados da teledramaturgia nacional. A figurinista Su Tonani, na época com 28 anos, acusou José Mayer após uma série de condutas inadequadas por parte do ator enquanto eles trabalhavam juntos na novela “A Lei do Amor”, da TV Globo. A denúncia veio por meio de um artigo no jornal Folha de São Paulo. Ela dizia que as investidas começaram com elogios, até chegar em frases como “você nunca vai dar pra mim?”. Por fim, ele chegou a colocar a mão em sua vagina. O ocorrido impulsionou o movimento “Mexeu com uma, mexeu com todas”.

As primeiras declarações foram apenas o início do que se tornaria um movimento de mulheres que diziam, em coro, que haviam sido vítimas de alguma forma de violência sexual, ultrapassando a linha da indústria do cinema. Foi a atriz Alyssa Milano, inclusive, que convidou mulheres a publicar “me too” (“eu também”), no Twitter, caso tivessem sofrido com assédio ou abuso em algum momento ao longo da vida. Nem todos os agressores foram responsabilizados na esfera criminal ou cível, mas diferentemente do que acontecia no passado, todos esses nomes, antes figurões da indústria, perderam seus contratos e trabalhos. “É interessante observar que embora o epicentro da campanha tenha sido a indústria cinematográfica, as denúncias que surgiram foram dando conta também de crimes cometidos por homens do alto escalão não apenas do cinema, mas também de empresas de mídia de entretenimento de modo geral, do setor de tecnologia, do alto escalão da política.

De imediato, a principal consequência direta da campanha foi a demissão dos acusados. Isso por si só é significativo porque eles passaram anos cometendo abusos sem que os casos viessem à tona, e mesmo quando vinham, não sofriam maiores consequências. Quer dizer que, de alguma forma, eles deixaram de ser intocáveis. Isso é muito importante”, aponta Nara Lya Scabin, doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e professora da Universidade Anhembi Morumbi.

Apesar da expressão ter ganhado força em 2017 e viralizado após as denúncias contra Weinstein, o movimento Me Too nasceu em 2006, tendo sido criado pela ativista Tarana Burke, inicialmente na cidade de Selma, no Alabama. Nara destaca que é importante lembrar que os acontecimentos de 2017 são frutos de décadas de luta pelos direitos das mulheres, e não deve ser visto como algo isolado. “A gente precisa pensar que a campanha é parte de movimentos e ações mais amplas. Talvez o Me Too seja a parte mais visível, mas é a ponta de um movimento maior”.

Os casos de abusos contra mulheres não são novidade para ninguém. Uma pesquisa realizada em 2017 pela Associação Brasileira de Produção de Obras do Audiovisual (Apro) com 1,4 mil profissionais do audiovisual mostrou que 90% das mulheres e 76% dos homens entrevistados disseram já ter sofrido assédio sexual ou moral. Ou seja, é quase como se todo profissional da área já houvesse sido vítima de alguma forma. Os dados mostram que essas histórias e casos sempre existiram, mas foi o Me Too que amplificou a pauta do assédio mundialmente. Para Natália Bridi, jornalista especialista em cinema e apresentadora do podcast #EntreMigas, um dos principais fatores de mudança é que hoje em dia esse tipo de comportamento não é mais “tolerável”. A internet também é um fator de peso para amplificar vozes que fazem as denúncias. “O que mudou foi ter se tornado algo extremamente público. Como a gente não tinha redes sociais antes, as informações ou ficavam contidas ou se perdiam. Mas ficou muito feio você fechar o olho para essas coisas hoje em dia. As pessoas faziam a coisa no automático, achavam que era o normal, vide as piadas de ‘teste do sofá’. Eu cresci ouvindo isso e acho que realmente houve um momento em que a chavinha virou.”

Natália também pontua que é extremamente importante que, para que a mudança se realize de forma concreta, exista mais diversidade e mulheres em posições de poder por trás das câmeras. “A série Loki, da Marvel, tem uma mulher diretora e várias roteiristas na equipe. A atriz Sophia Di Martino, que interpreta a Sylvie, foi escalada para ser co-protagonista da série após ter acabado de ter neném. Quatro meses depois de ter filho ela já estava gravando, porque para ela era muito importante. Tinha feito vários papéis menores, mas agora se tratava de uma série da Marvel, de escopo internacional. Adaptaram o uniforme dela para que conseguisse amamentar, tirar o leite durante as gravações. Isso só acontece quando você tem mulheres lá que vão justamente entender que ser mãe não é uma deficiência, uma dificuldade, é uma questão humana, mulheres têm filhos e querem continuar com a vida delas. Acho que só assim, com essa estrutura, várias visões, a gente evoluiu.”

Flávia Guerra, jornalista, documentarista e especialista em cinema, também reitera a importância da diversidade ao destacar que o audiovisual forma opiniões e mentes, e por isso a importância de que as narrativas não tenham aquele male gaze – o olhar masculino utilizado para representar as mulheres e o mundo, seja na arte ou na literatura. E para combater o assédio sexual na indústria, Flávia avalia que é importante que se reconheça que ele existe para que determinadas questões sejam formalizadas. Ela cita como exemplo a cartilha do pacto anti-assédio no audiovisual, criada em 2018 pela Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais (Apro) durante o Festival Internacional de Mulheres no Cinema, com uma série de diretrizes a serem seguidas. “As produções se comprometem a cumprir a cartilha. Quando a classe se mobiliza para discutir e implementar isso, a pauta ganha força. Na França, o Centre National du Cinéma et de l’image Animée (CNC), a ‘Ancine’ do país, realizou este ano um debate com mulheres do audiovisual sobre o tema. Lá, as produções adotam essas informações no seguro, por exemplo. Se existir um caso de assédio ou violência sexual, o seguro cobre se a produção atrasar. Quando você começa a colocar esse tipo de cláusula, vira um assunto cotidiano entre as equipes, o que pode e o que não pode ser feito. Não que a gente não soubesse antes, mas isso ficava em zonas cinzentas. Quando se torna algo oficial e a gente admite que há assédio, a gente também protege mais as mulheres. Quando o mercado se posiciona, ganha força”.