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Chefe invade live de modelo que o acusava de transfobia e a agride ao vivo; veja

Universa/UOL | 21/07/21 - 12h46
Reprodução/Instagram

Nos últimos dez anos em que vem passando pelo processo de transição de gênero, a modelo Jeniffer de Oliveira Pereira, 25, conta que nunca sofreu transfobia, ou seja, preconceito em relação ao gênero com o qual se identifica. Até começar a trabalhar como vendedora na loja Fendior, no centro de São Paulo, há pouco mais de um mês.

Foi da loja de roupas e acessórios que ela decidiu fazer uma live [vídeo ao vivo] em suas redes sociais para acusar o chefe, o empresário Helio Job Neto, de maus tratos e transfobia, relatando, entre outras coisas, que ele a chamava de "traveco". Job Neto invadiu a transmissão para agredi-la.

No vídeo, ele nega as acusações. Depois, na delegacia onde o caso foi registrado, o empresário afirmou que as agressões foram mútuas e ocorreram após a demissão de Jeniffer.

Em conversa com Universa, a modelo conta que conhece Helio há dez anos, quando ainda não havia feito sua transição de gênero, e que foi chamada para trabalhar na loja porque, segundo ela, o empresário queria ter uma equipe mais diversa de funcionários. A marca Fendior é, inclusive, conhecida entre o público LGBTQIA+.

Ela diz que chefe a chamava de 'traveco' e fez comentário racista

"No começo, ele se mostrou bacana, mas com o tempo passou a fazer comentários do tipo: 'E aí, traveco? Hoje você está parecendo mais mulher, né?'. Respondi que não queria ser humilhada daquela forma e pedi para ele parar", conta Jeniffer.

Ela fala que o patrão, no entanto, seguiu com os comentários preconceituosos, mas como precisava do emprego preferiu nada falar. Até que no domingo (18), ela apareceu para trabalhar com os cabelos cacheados e não alisados e ouviu um comentário racista. "Ele perguntou se ia trabalhar daquele jeito, com aquele cabelo. Me senti humilhada, mas continuei fazendo meu serviço."

Por volta das 17h30, Jeniffer diz que atendia a um cliente quando Helio a teria mandado se calar. Ela então decidiu pedir demissão. Foi quando começou a discussão, presenciada, segundo ela, pela gerente da loja e pelo pai de Helio, que também estava no local e aparece no vídeo, de camisa estampada, gritando com ela.

"Decidi encerrar o meu trabalho com a empresa porque não aguentava mais ser humilhada. E pedi para a gerente atender os clientes, mas nesse momento ouvi o Helio me chamando de folgada. Respondi que não aceitava ser tratada daquela forma e ele veio me bater. Foi quando comecei a gravar o vídeo."

"Ele tentou puxar o meu celular, levei dois puxões no cabelo, dois murros, e depois ele e o pai ainda tentaram me prender no estoque, mas consegui fugir e saí gritando. Também chamei a polícia."

Polícia não registrou caso como de transfobia por 'falta de elementos'

Os três foram encaminhados ao 78º DP, nos Jardins. Jeniffer afirma que o chefe prestou depoimento de uma hora e meia na delegacia e foram dispensados e que o delegado não quis ouvi-la.

"O delegado disse que já tinha usado o que eu havia contado para os policiais que atenderam a ocorrência na loja, me mandou ir trabalhar e procurar uma advogada. Ainda me chamou pelo meu nome de batismo, sendo que meus documentos já são retificados [com o nome de mulher, gênero com o qual ela se identifica]. Fui então fazer o exame de corpo de delito e, depois, para casa."

"Sempre fui muito bem tratada, tenho apoio da minha família. Agora estou encarando pela primeira vez a realidade que muitas amigas trans relataram. Nunca imaginei que fosse tão cruel."

Universa procurou Helio e seu advogado, por telefone, mensagens e e-mail, e não obteve resposta. Helio Job, que tem 635 mil seguidores no Instagram, fechou sua conta após o episódio.

De acordo com o boletim de ocorrência, Helio informou que o desentendimento começou porque demitiu Jeniffer e, inconformada, ela teria exigido ali mesmo o pagamento de seus dias trabalhados. E quando ouviu que só receberia no próximo dia útil, ela teria feito o vídeo. Por isso, ele justifica, tentou tomar o celular de sua mão. Helio afirmou ainda que os dois se agrediram.

O boletim nada fala de transfobia. No texto lê-se ainda que Jeniffer contou ter sido agredida por desentendimento no trabalho e trancada no depósito da loja Fendior. A modelo diz a Universa que retornará à delegacia com advogado para pedir que o caso seja investigado como transfobia e racismo, já que, segundo ela, o chefe também a ofendeu por causa dos cabelos.

Em nota enviada a Universa, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que todos os os envolvidos foram ouvidos na delegacia e que em nenhum momento foi citado qualquer elemento que indicasse crime de transfobia.

Delegacia tem obrigação de ouvir vítimas

O Brasil lidera o ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo. Em 2020, foram 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas, uma alta de 41% (124) em relação ao ano anterior. Os dados são baseados em notícias veiculadas na mídia e fazem parte de um dossiê elaborado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

Em 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) aprovou a criminalização da homofobia e da transfobia, agressões que a partir de então passaram a ser tipificadas da mesma forma que o racismo — ou seja, um crime hediondo, inafiançável e com pena de dois a cinco anos de prisão para o agressor.

Em seu voto, o ministro Luiz Fux citou, como exemplos de homofobia, desde agressões físicas motivadas por intolerância até a recusa de aceitar alunos homossexuais ou filhos de homossexuais em escolas.

Caso a pessoa se sinta desrespeitada e resolva denunciar na delegacia, o dever da instituição é fazer o boletim de ocorrência e investigar. Quem decide se há crime é o Ministério Público, órgão que faz a acusação à Justiça ou arquiva o caso, conforme ensina a vice-presidente da Comissão de Diversidade e Igualdade de Gênero da OAB - SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Priscila Sanches Salviano de Oliveira.

"Se a vítima se sente discriminada, ela tem o direito de fazer o boletim de ocorrência e ser ouvida. E seria interessante ir acompanhada de advogado. Quem é o dono da ação penal é o Ministério Público, que vai denunciar ou arquivar. É complicado fazer juízo de valor na entrada da delegacia. O preconceito é amplo e quem sofre é a vítima, não o delegado ou delegada."