Saúde

Infecção causada por lente de contato pode levar à cegueira

A negligência com a higienização na hora de manipular as lentes pode facilitar a proliferação de parasitas

VEJA.com | 09/11/18 - 21h25
Lente de Contato | iStock/Getty Images

Para muitas pessoas, trocar os óculos de grau pelas lentes de contato traz mais facilidade ao dia a dia. No entanto, se não for utilizada adequadamente, seguindo as recomendações de tempo de uso e limpeza, essa alternativa pode trazer diversos problemas para a saúde da visão, incluindo cegueira e perda do globo ocular. Uma das doenças mais raras e graves envolvendo as lentes de contato é a ceratite ocular, que pode ser causada pelo protozoário Acanthamoeba spp. Apesar de estar em diversos ambientes, esse parasita é encontrado principalmente na água, onde gosta de viver; no entanto, os cientistas ainda não sabem explicar qual é a relação entre o micro-organismo e as lentes de contato.

Segundo especialistas, o número de casos no Brasil tem aumentado, preocupando oftalmologistas já que 25% das pessoas afetadas requerem transplante de córnea para tratar a doença ou restaurar a visão. Estudo publicado recentemente no British Journal of Ophthalmology (BJO) mostrou que os principais fatores de risco para o desenvolvimento da ceratite por Acanthamoeba é a exposição à água, como uso incorreto das lentes de contato (em especial as do tipo gelatinosas) durante o banho (chuveiro ou banheira) e a piscina – que apresenta o maior risco de contágio. 

A negligência com a higienização das mãos e das lentes também trazem sérios riscos para a contaminação, como foi o caso do engenheiro Kaell Braga, de 37 anos, que limpou as lentes apenas com água e acabou se expondo à infecção. “Antes disto acontecer, eu estava sentindo um desconforto no olho esquerdo. Fui ao hospital e a oftalmologista que me atendeu disse que se tratava de um defeito epitelial na camada mais externa do tecido corneano, que eu acredito ter sido causado em uma brincadeira com a minha filha”, contou à BBC. 

O oftalmologista orientou o uso de uma pomada durante cinco dias, nos quais também não deveria usar as lentes de contato. No entanto, por causa de um compromisso, três dias depois ele trocou os óculos pelas lentes. Braga comentou que o desconforto piorou e outros sintomas manifestaram, como lacrimejamento. Acreditando se tratar do mesmo problema para o qual estava fazendo tratamento, o engenheiro voltou a utilizar a pomada, que não surtiu efeito. “Retornei ao hospital e, depois de duas consultas, me encaminharam para um especialista em córnea”, disse. 

Diagnóstico e tratamento
Em junho de 2016, Braga recebeu o diagnóstico de ceratite como resultado de lavar a lente sem utilizar os produtos de desinfecção. A doença provocou dores no olho e problemas para enxergar. O tratamento inicial foi feito através de cinco colírios distintos, que deviam ser pingados com frequência (de hora em hora), inclusive durante a madrugada. Os especialistas relatam que fazer o diagnóstico é difícil e os tratamentos – feitos com antibióticos e colírios nem sempre disponíveis no Brasil – – são longos e nem sempre produzem os efeitos esperados.

Alguns meses de tratamento conseguiram curar a infecção em Braga, mas o uso prolongado das medicações acabou prejudicando sua córnea. Para tentar reverter a situação, ele recorreu ao uso do soro autólogo – feito a partir de seu sangue – e implante de membrana amniótica, que consiste na aplicação de um fragmento de membrana sobre a superfície ocular.

Embora os esforços tenha sido muitos, nada gerou funcionou. Por causa disso, em março deste ano, ele precisou recorrer ao transplante de córnea, capaz de ajudar na recuperação parcial da visão. “Infelizmente, o transplante de córnea continua sendo a última solução em caso de infecção grave. Espera-se que a conclusão recente do genoma da Acanthamoeba spp. agilize a identificação de novos alvos farmacológicos [locais na estrutura do agente infeccioso em que os medicamentos podem atuar]”, explicou Keila Monteiro de Carvalho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), à BBC.

Para Braga ainda foi necessário uma segunda operação para tratar a catarata, provocada pela Acanthamoeba spp. O protozoário também pode trazer outras consequências, como glaucoma, inflamação da esclera e da retina, queda da pálpebra e cegueira. A doença ainda afeta a saúde mental do paciente, sendo a depressão a manifestação mais comum. 

Pelo mundo
O Brasil não é o único país a enfrentar um aumento significativo da ceratite por Acanthamoeba. O estudo da BJO apontou que uma análise de dados no intervalo de 1984 a 2017 revelou um surto no Reino Unido entre 2011 e 2017. A literatura médica indica que os casos foram mais frequentes na década de 1980 nos Estados Unidos e na Inglaterra. No Brasil, onde os primeiros casos foram relatados há 30 anos, os especialistas afirmam que dois ou três atendimentos são feitos por semana em decorrência do problema, valor considerado alto, principalmente quando se trata de uma doença rara.

Em entrevista para a BBC, Denise de Freitas, membro do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), disse que a ceratite causada pelo protozoário tem os piores prognósticos uma vez que cerca de um quarto dos pacientes mais graves chegam a perder 75% da visão ou ficam cegos após tratamento prolongado – que pode durar até 10 meses. Além disso, o transplante de córnea, como o realizado pro Kaell Braga, é necessário em 25% dos casos. Em outras situações, a retirada do globo ocular, substitui por prótese de acrílico e olho de vidro, é a única opção.

Diagnóstico precoce
Especialistas da Inglaterra e dos Estados Unidos recomendam que o tratamento seja iniciado nas primeiras duas semanas de contaminação, o que pode garantir o melhor prognóstico. Por isso, o indivíduo que sentir desconforto, ardência, coceira, fotofobia (sensibilidade à luz) e lacrimejamento (em um ou nos dois olhos) deve procurar ajuda médica.

Apesar de ter sintomas comumente confundidos com outros doenças oculares, a ceratite por Acanthamoeba pode trazer sérias consequências e afetar o dia a dia do paciente, interferindo no sono, na rotina de trabalho e alimentação por causas das intensas dores. “O problema é que no Brasil as pessoas procuram os médicos depois de dois meses, então o início do uso de medicamentos é tardio”, ressaltou Denise.

Prevenção
A melhor forma de evitar a ceratite por Acanthamoeba, é não se expor à água quando estiver com lentes de contato; também é preciso ser cuidadoso com a higiene das mãos na hora de manejar o produto. Keila ainda recomendou a limpeza diária das lentes com solução para desinfecção, que não devem ser reutilizadas. Os estojos devem ser trocados a cada três meses e a lente não podem ser utilizada mais do que o período indicado pelo fabricante. “Sem dúvida, a visita frequente ao oftalmologista também é fundamental”, destacou.