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'Lá, faxineiro tem uma vida': deportados contam por que escolheram viver ilegalmente nos EUA

BBC Brasil | 15/02/20 - 18h18
Mandel Ngan/AFP

"Antes de eu ir, o meu irmão me falou o seguinte: Edilson, aqui só depende de você, de mais ninguém. Porque se você quer trabalhar, aqui você consegue tudo o que você quer. O que um rico pode ter no Brasil, você pode ter nos Estados Unidos."

As palavras do irmão que morava em Boston encheram de esperança o jovem Edilson, que andava desanimado com o futuro pouco promissor em Governador Valadares (MG), cidade de 279 mil habitantes que ganhou fama nacional por ser grande "exportadora" de brasileiros que emigram para os Estados Unidos. Segundo o IBGE, 35% da população da cidade tem renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa.

Em 1988, Edilson tinha 19 anos e havia estudado só até a oitava série do ensino fundamental. Trabalhava lavando carros e morava de favor na casa de um tio com a mãe, que sustentava os filhos trabalhando como lavadeira.

"Sabe como é tio; como você depende dele, ele quer bater em você, te chamar disso ou daquilo. Mas aí, parece que é Deus: levou meus irmãos para os Estados Unidos e levou um atrás do outro; deu oportunidade para todo mundo."

Depois de viver por 20 anos em Boston e ser deportado de volta ao Brasil em 2008, quando recebeu uma carta do serviço de imigração americana dando 90 dias para que ele deixasse o país, Edilson diz que só tem coisas boas a dizer sobre os Estados Unidos, que lhe deram, principalmente, oportunidades. Começou trabalhando como servente de pedreiro, sem falar ou compreender nada de inglês; depois de sete anos, abriu sua própria empresa de faxina e realizou sonhos que pareciam impossíveis no Brasil.

"Eu tinha uma companhia que valia US$ 180 mil [R$ 776 mil] e, quando eu vim embora, eu vendi por US$ 75 mil [R$ 323 mil]. Tive que vender a preço de banana", diz. Ele investiu na construção de dois prédios residenciais e alguns terrenos na região de Valadares, e vive até hoje da renda desses investimentos. Conversou com a BBC News Brasil no prédio de dois andares em que mora atualmente com a namorada.

Na realidade americana, quando coordenava sua própria equipe de limpeza, Edilson diz que ganhava dinheiro no ritmo de sua disposição e capacidade para trabalhar, que eram grandes.

"Eu estava ganhando tanto dinheiro que eu peguei US$ 45 mil [R$ 194 mil] e comprei um carro para sair sábado e domingo, sendo que eu já tinha outro para trabalhar. Olha que cabeça. O vendedor falou: você vai financiar em quantos meses? Eu disse 'Não, vou pagar à vista'. Tirei um pacote de notas de US$ 100 e joguei em cima da mesa. Quando no Brasil você faz isso?"

Desde o ano passado, o governo dos EUA endureceu as regras para quem tenta cruzar a fronteira e anunciou um novo processo de deportação rápida, que dispensa a necessidade de os casos passarem pelos tribunais de imigração.

Com as novas regras, qualquer imigrante que não consiga provar que esteve no país por dois anos ininterruptos pode ser deportado de forma imediata, e mais brasileiros têm sido obrigados a abandonar a vida americana. Desde outubro, três aviões fretados pelo governo do presidente Donald Trump já trouxeram brasileiros deportados para o aeroporto de Confins, em Belo Horizonte.

Sob as novas regras, os relatos de quem fica detido por meses na imigração são de fome, frio e maus-tratos.

'Vestir, morar, ter saúde, carro bom'

O consultor de vendas Célio, 41 anos, também foi deportado de volta a Valadares em 2003, depois de viver três anos nos Estados Unidos com a esposa e a filha.

Entrou com um passaporte falsificado que comprou em Valadares, com a ajuda de amigos que já haviam emigrado e queriam ajudar. "Eu só levei um passaporte e nem era meu, eu entrei nos EUA sem nunca ter tirado um passaporte no Brasil. Fui com o nome de uma outra pessoa que parecia comigo, e o rapaz só trocou a foto da frente, não trocou a foto do visto, que é aquela escaneada. Lembro o nome dele até hoje, aprendi a assinar a assinatura dele", conta.

A esposa, de quem Célio atualmente é divorciado, entrou com a filha sete meses depois, cruzando a fronteira pelo México. "Nessa época em que ela foi, o rapaz que fez a minha documentação não fazia mais, a Polícia Federal tinha ficado em cima dele. Daí ela foi pelo México: ficou cinco dias na travessia ali e chegou em Boston, até mim. No Texas tinha uma equipe esperando, que a colocou no trem e eu a peguei na estação de Boston".

Apesar de ter passado pela prisão e deportação, o consultor de vendas diz que a experiência não reduziu em nada a admiração que tem pelos Estados Unidos, principalmente pelas muitas oportunidades que o país oferece. "Acho aquela terra maravilhosa, organizada, acho que eles estão certos em 99% da organização deles", diz.

Pensa em voltar. Desta vez, porém, sonha em conseguir o visto legalmente. "Eu tenho um documento que dizia que depois de cinco anos eu podia tentar o visto de novo. Já tem 17 que eu estou aqui."

"E outra coisa: é incrível quando você para para analisar que um faxineiro dentro de um país daquele tem oportunidade de vestir, morar, ter saúde, tratar de uma família, andar em um carro bom. Lá você não se mata de trabalhar. Trabalhando em período integral, você e a esposa conseguem trabalhar para sustentar uma família, ter um carro para andar, e participar das coisas que uma sociedade normal participa. Ir num restaurante, ir numa loja", afirma.

Célio diz que conseguiu em pouco tempo pagar a dívida de US$ 10 mil que fez para emigrar, bem como para levar a família. "Acho que as oportunidades teriam fluído bem mais lá, se eu não tivesse sido deportado". Habituado à rotina no Brasil, Célio rebate as críticas de quem afirma que, quando um brasileiro parte para o subemprego em outro país, é tratado como escravo.

"Escravos nós somos aqui. Absurdo de se viver é nesse país. Eu trabalho aqui oito, quinze, desesseis horas por dia. Para eu manter um carro é a coisa mais difícil, no meu próprio país. Com o salário de uma pessoa que faxina uma residência nos EUA, as pessoas que trabalham limpando lojas até cinco horas da manhã, elas têm condições de ter uma vida. Eles podem morar, beber, vestir, escolher a culinária que querem comer. Aquele país é um espetáculo, eu não consigo ver o lado ruim daquele país. E olha que eles me prenderam e eu fui deportado", afirma.

"Aqui no nosso país quando que um faxineiro consegue comprar uma casa, comprar um carro, e quitar direitinho as dívidas, pagar os impostos no final do ano, levar o filho para comprar roupa?"

Ele afirma que até compreende a postura mais rígida dos EUA para barrar os imigrantes, inclusive os brasileiros. "Aquele país é todo dia minado de gente que chega pedindo socorro, querendo entrar. Se receber bem todo mundo, que país que aguenta? Nenhum."

Ajuda de quem já foi, medo da prisão e dinheiro escondido

Edilson criou coragem para migrar inspirado pelo exemplo do irmão, que era pintor de casas nos Estados Unidos e ia trabalhar todos os dias dirigindo uma BMW.

Foi ele quem mandou os US$ 1.200 (R$ 5.170) que Edilson usou para pagar o coiote e as despesas da viagem. "Meu irmão morava de aluguel, tinha seu carro próprio, coisa que ele nunca teve no Brasil. Lá você pode ter tudo que você quiser, pode andar num BMW zero se você quiser. Basta você querer trabalhar."

Mas, apesar da prosperidade, muitas das memórias de Edilson sobre a viagem envolvem perigo e sofrimento.

"Quando você chega lá em Tijuana, para fazer a travessia para San Diego, você tem que nadar a largura de um rio, uns 20 metros, menor que o Rio Doce (que corta a cidade de Valadares). Mas dá medo porque é água corrente, a água corre rápido."

Conta que, quando chegou a vez de ele e o irmão fazerem a travessia, tiveram também que socorrer um companheiro que não sabia nadar. "Ele não falou que não sabia. A ansiedade dele era tão grande de fazer a travessia, porque ele saiu devendo do Brasil, que ele pulou na água do rio. E na hora em que ele pulou, ele afundou", diz. "Como você deixaria um amigo morrer na água sabendo que você pode ajudar? Não tem como."

Para chegar até a fronteira, viajou por três semanas em um ônibus cheio de imigrantes levados pelos coiotes. "É uma viagem muito cansativa, é muito sofrido. Você passa fome, você fica preso, você fica estressado. Levei só uma mochila de roupas, mas na estrada joguei tudo fora. Você não aguenta levar as roupas porque aquilo se torna pesado. Fiquei só com uma peça no corpo."

Na chegada a Tijuana, antes de começar a nadar, o maior desafio era escapar dos olhares da polícia americana. "Dá medo de ser preso. Quando você chega em Tijuana, os policiais já ficam te olhando. Eles já veem que você está querendo fazer a travessia."

Edilson chegou a San Diego com o dinheiro — que aprendeu a esconder no cós da calça, seguindo as dicas do irmão que organizou a viagem — molhado.

"Quando eu fui, meu irmão que mora nos EUA já tinha me falado: Edilson, você não coloca o dinheiro todo no seu bolso. Deixa só US$ 100 no bolso porque, se os coiotes chegarem pedindo dinheiro você fala 'Ó, eu só tenho esse dinheiro aqui, se eu te der tudo, vou ficar com fome'", lembra. "Furei um buraco no cós da calça, fiz enroladinhos com o dinheiro e coloquei tudo lá. Cheguei em San Diego eu ainda tinha US$ 900."

Se hospedou em um hotel, tomou um banho de quarenta minutos, dormiu por três dias e comprou uma passagem de avião para Boston, onde iria morar e recomeçar a vida.

Entre a vontade e o medo

Quando a reportagem pergunta a Edilson se ele pretende voltar aos EUA, ele parece indeciso. Diz que não tem nada mais que o prenda no Brasil, desde que a mãe faleceu, há três semanas.

Mas tanto ele quanto Célio são firmes em dizer que, hoje, tentariam entrar pelas vias legais. "A coisa mais importante da minha vida eu perdi. Então o Brasil, para mim, não tem sentido", afirma Edilson.

Ele diz que foi muito difícil se habituar novamente à realidade brasileira, ainda mais de maneira abrupta.

"Quando eu cheguei, fiquei muito triste, desesperado. Pensava 'Por que eu vim embora?', ficava chateado, pelos cantos chorando, não sabia o que fazer. Minha irmã me falava porque você está desse jeito? A vida que você tem está boa, você não deve nada a ninguém, você tem um patrimônio, onde você quer você vai. Mas a gente fica muito estressado."

Sentia falta da limpeza dos EUA, e do custo de vida, "totalmente diferente". "Com US$ 100 [R$ 431] lá você enche um carrinho de compra, aqui com R$ 100 você não faz. Fico pensando em um pai de família com filho, como viver com R$ 1 mil". Hoje, Edilson diz que tem renda aproximada de R$ 6.500 por mês, mas não vê o dinheiro sobrar. "Gasto tudo, e não é em luxo."

Por outro lado, vivendo uma vida pacata no Brasil com a renda dos aluguéis que recebe, ele reconhece que a disposição para o perigo não é a mesma dos 19 anos.

Embora a família esteja dividida entre Boston e Valadares — tem irmãos, primos e sobrinhos morando nos EUA —, hoje ele tem mais a perder do que antes. "Lá eu teria que começar do zero. Teria que chegar lá, trabalhar para os outros, meus irmãos teriam que me ajudar, pelo menos por um tempo. Começar tudo de novo. Aí eu fico desanimado."

Ele diz que hoje compreende quem ainda se arrisca para mudar para lá, desde que não seja em situações de risco à vida. Cita o exemplo do amigo dele que não sabia nadar, e lembra da tristeza que sentiu ao ver a foto dos corpos do imigrante salvadorenho e de sua filha de quase dois anos que morreram afogados enquanto atravessavam o Rio Grande na cidade de Matamoros, no estado mexicano de Tamaulipas. Eles tentavam chegar à cidade texana Brownsville (EUA).

Os corpos foram encontrados no lado mexicano da fronteira, em junho do ano passado. As fotos que mostram a criança com o bracinho apoiado no pescoço do pai provocaram forte comoção no país.

"Aquilo nossa senhora, só quem não tem coração para falar. Ele foi para procurar uma melhora para família e acabou ele e a filha morrendo. Triste demais. Morrer por isso não vale a pena."