Mundo

Sem escolha, refugiados recorrem a empreendedorismo e resgatam raízes

Folhapress | 21/04/21 - 08h19
Foto: Mathilde Missioneiro (F)/Folhapress

A pandemia agravou a situação já delicada de muitos refugiados e imigrantes que, sem inserção no mercado de trabalho formal, encontram no empreendedorismo uma das únicas formas de se sustentar por aqui.

Vindos de países diversos, eles apostam no resgate das suas raízes para criar produtos atrativos aos brasileiros. Anas Obaid, 32, trabalhava como jornalista em um canal de televisão estatal na Síria quando eclodiu a guerra civil, em 2011. Após ser raptado durante 11 dias por grupos religiosos contrários ao governo, ele decidiu sair do país.

Sem documentos, Anas entrou no Líbano em 2015 –e permaneceu lá por três anos, até começar a viver episódios de xenofobia. "Fui a todas as embaixadas de países com discurso pró-direitos humanos em Beirute e consegui um passaporte brasileiro."

Chegando ao Brasil, em 2018, sem falar português, Anas trabalhou como lavador de pratos em um restaurante árabe durante oito meses, com salário de R$ 800.
Aqui, ele conservou alguns hábitos da sua terra: preparava seus próprios perfumes –e era elogiado por amigos e conhecidos. "Na Síria é comum fazer um perfume no barbeiro, ao cortar o cabelo", conta.

O feedback deu confiança para que ele tentasse produzir, em pequena escala, aromas personalizados. A iniciativa chamou atenção, e Anas foi convidado por instituições para participar de eventos culturais, nos quais vendia as fragrâncias.

Uma delas, inspirada em sua terra, é feita de limão, orquídeas, lírios e base de almíscar –o vidro com 50 ml custa R$ 50 e o com 120 ml, R$ 100. Com a paralisação dos eventos, Anas passou a vender por WhatsApp. Nesse período, sua renda caiu drasticamente, mas ainda assim é maior que a do seu primeiro emprego.

A venezuelana Rosalva Cardona, 38, também apostou nas vendas por WhatsApp para manter seu negócio, a Arepas Picatta Sp. Ela, que chegou ao Brasil com o marido e o filho em 2015, prepara pratos típicos na cozinha de casa, na zona oeste de São Paulo.

Entre as opções, que são congeladas, há arepas, feitas com milho branco e amarelo (R$ 28), empanadas de milho (R$ 36) e tequeños ("dedinhos" de queijo, por R$ 25)
Assim como Anas, Rosalva não trabalha na área em que se formou na Venezuela. Lá, ela atuou por nove anos como engenheira elétrica em uma estatal. O marido, que toca a cozinha, é administrador.

O fluxo de imigrantes e refugiados venezuelanos para o Brasil foi um dos fatores que fez com que a Acnur (agência da ONU para refugiados) desenvolvesse iniciativas específicas para capacitar essa população no empreendedorismo e conectá-la ao setor privado. Assim nasceu a plataforma Refugiados Empreendedores, em fevereiro.
Segundo Paulo Sérgio Almeida, oficial da Acnur no Brasil, a iniciativa serve como vitrine para os negócios dos refugiados, tanto para possíveis clientes quanto apoiadores.

Dos 57 empreendedores cadastrados –de nove nacionalidades e espalhados em dez cidades–, 55% são mulheres.
O apoio de instituições é importante para o sucesso de negócios de refugiados e imigrantes. O Sebrae também atua com esse público, entrando em contato com ONGs especializadas em migração para oferecer as capacitações.

Segundo Larissa Moreira, gerente de negócios do Sebrae-SP, a ideia é oferecer suporte para que os empreendedores sejam independentes. Ela afirma que o principal obstáculo, além do idioma, é a burocracia.
"Ao chegar ao país, eles precisam de um RNE (Registro Nacional de Estrangeiro). Para abrir a MEI, por exemplo, o RNE precisa ser permanente."

A abertura do CNPJ foi um entrave para a colombiana Liliana Pataquiva, 42. Ela, que começou a empreender com uma food bike de arepas, abriu um CNPJ de restaurante, embora trabalhasse com eventos. Na hora de emitir as notas fiscais, encontrou dificuldades.

Natural de Bogotá, ela fugiu para o Brasil em 2014 após ter suas lojas destruídas por grupos criminosos locais que exigiam propinas dos comerciantes. "Saímos apenas com a roupa do corpo", lembra.

Ela veio sozinha e começou a trabalhar como garçonete. Dois meses depois, o marido e o filho se juntaram a ela.
Com o tempo, a food bike virou um food truck. "Inventamos um prato parecido com o PF brasileiro, só que colombiano. Custa R$ 25 e tem arroz, feijão-vermelho, banana-da-terra, batata rústica."

Em 2020, Liliana abriu um ponto físico para seu restaurante, o Urbanika, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Até agora, ela tem conseguido se manter com delivery.
Para se estabelecer, Liliana contou com apoio da Igreja Nossa Senhora da Paz, na região do Glicério, onde foi instruída a pedir a documentação como imigrante, não refugiada. "Naquela época, o documento para refugiado levava muitos anos", conta.

Quando decidiu empreender, ela pesquisou instituições que auxiliassem nesse processo. Uma delas é a ONG Migraflix, fundada pelo argentino Jonathan Berezovsky em 2015.

Além de oferecer cursos de capacitação em empreendedorismo, a plataforma conecta os refugiados com o mercado. Eles já fizeram parcerias com a UberEats e o Airbnb, vendendo comidas típicas e experiências de workshops ministrados por imigrantes.
No bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo, imigrantes bolivianas encontraram na formação de uma cooperativa uma forma de sobreviver à crise.
Por meio de iniciativa da Casa do Povo, um espaço cultural do bairro, as costureiras puderam se cadastrar no auxílio emergencial e retirar cestas básicas. Ainda em 2020, os voluntários da casa ofereceram oficinas sobre a organização de cooperativas e empreendedorismo.
"Não é fácil empreender sem instituições sólidas e engajadas", diz Pablo Ferraro, designer de moda argentino e coordenador do projeto.
Além de conectar as empreendedoras a clientes, o grupo tem apostado na confecção própria e em parceria com instituições culturais. Agora, estão em um projeto de financiamento do British Council, em parceria com uma ONG paquistanesa de bordadeiras.
"O trabalho em comunidade é essencial para o sucesso."