Nordeste

'Um filme de terror', diz filha sobre exumação do pai após enterro por engano

Correio 24h | 18/03/21 - 10h05

Diagnosticado com câncer de pulmão em estado grave, Antônio Martins Moreira, 85 anos, já tinha sido desenganado pelos médicos. Quando foi descoberta a metástase, a família o levou para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde ficou 10 dias na fila da regulação para uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Da UPA, foi transferido para o Hospital Santo Antônio, das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), e, em paralelo, os filhos tentavam vender os bens dele para que o patriarca passasse os últimos dias no conforto de sua casa, no regime de homecare. 

Só que a família não teve tempo. Antes disso, a filha, Sônia Martins Moreira, 42, foi acionada pelo hospital para reconhecer o corpo do pai no dia 4 de fevereiro. Ao chegar lá, a surpresa: o corpo que era indicado como de seu Antônio não era dele. Pior que isso, ele já tinha sido enterrado por outra família, sem que os reais parentes pudessem se despedir dele. O jeito foi o hospital entrar na Justiça para garantir a exumação do cadáver e cada família poder enterrar o morto certo. A notícia da exumação foi dada em primeira mão pelo Bahia Notícias, nesta terça-feira (17), pela jornalista Claudia Cardozo. 

“Filme de terror” 
O erro do hospital fez com que Sônia tivesse que acompanhar a exumação do corpo do pai, que passou 15 dias enterrado no cemitério Quinta dos Lázaros. Devido à demora de uma decisão da Justiça, ele já estava em um estágio avançado de decomposição.

“No momento que tirou ele do caixão, foi uma cena muito forte, uma nuvem de barata cobrindo a parede e muito mosquito. Ele também teve que ficar uma semana no IML [Instituto Médico Legal] para ser identificado, e, quando fui recolher, ainda tive que passar pela situação de ver ele dentro de uma caixa, tava só o osso e o resto de pele desidratada pelo formol. Parecia um filme de terror, é realmente algo muito chocante, muito terrível”desabafou a filha, pelo telefone, bastante comovida.    

Desde 17 de dezembro, quando o pai foi internado nas Osid, ela só pôde visitá-lo duas vezes. Com a pandemia de covid-19, a circulação do hospital foi reduzida e nem mesmo se despedir dignamente a família teve direito. “Não teve despedida, não tive a chance de olhar pro rostinho dele, de olhar pra ele pela última vez”, lamenta Sônia. 

O sentimento que fica, além de muita dor, é também o de revolta. “No primeiro momento, senti revolta, e uma dor muito grande, raiva, indignação, muita coisa ao mesmo tempo. A gente vê esses casos na TV e acha que não vai acontecer com a gente. A revolta é por eu não ter tido a oportunidade de ver meu pai pela última vez, eu estava mais de um mês sem ver ele porque o hospital não permitia e meu pai morreu sozinho, sem ninguém”, queixa-se Sônia.  

Esposa confunde o corpo do marido 

O que a família tenta entender é como foi possível confundir os mortos, já que os óbitos ocorreram em dias distintos - um dia 3 e outro dia 4 de fevereiro - e estavam internados em alas de prédios diferentes. Nem a cor da pele ou o cabelo eram parecidos. Um era branco, com cabelo liso. Já Antônio tinha a cor da pele mais escura, com cabelo curto, quase raspado, bem mais magro do que o senhor com quem foi confundido.  

“Tive contato com a viúva e fiquei sabendo que ela estava muito nervosa quando foi reconhecer o corpo do marido, o funcionário do necrotério começou a fazer pressão dizendo que não poderia demorar por causa da covid e, quando ela viu o nome do marido no peito de meu pai, achou parecido, e disse que era ele e liberaram o corpo”, conta Sônia. O CORREIO ligou para a viúva que confundiu o corpo de Antônio com o marido dela e também para a filha, mas nenhuma das duas atendeu às ligações.  

A dor é maior ainda pois Sônia perdeu a mãe, Maria Martins, há quatro meses, por complicações da doença de Parkinson. Maria tinha 82 anos e 60 anos de casada com Antônio. Os dois moravam na roça, na cidade Oliveira Brejinhos, no Centro-Sul da Bahia. Nascido em Castro Alves, a vida toda seu Antônio foi agricultor. “As paixões dele eram os animais, acordar cedo, ver os bichinhos dele, andar de cavalo, correr a terra dele toda, consertar a cerca, e toda essa rotina. Ele era um homem trabalhador, honesto, batalhou a vida toda”, lembra a filha.   

Além de Sônia, o casal teve mais 10 filhos e mais de 15 netos. Somente quatro dos irmãos moram em Salvador, o restante se mudou para São Paulo. A exumação do corpo de Antônio foi feita no dia 12 de fevereiro e o velório no dia 20 de fevereiro. Ele agora está enterrado no Campo Santo, na mesma quadra que a ex-mulher, Maria Martins. 

Depois de toda essa confusão e do doloroso processo de sepultamento do pai, Sônia quer só que as respostas venham à tona. “A equipe do hospital tem que responder para que tome mais cuidado para isso não vir a acontecer com outra pessoa. O desespero, a dor que é parece que está me cortando por dentro e ele não merecia isso. Teve uma falha ali e preciso saber em que momento foi, isso precisa ser investigado. Como é que os corpos foram trocados se o homem morreu 24 horas antes de meu pai?”, indaga. 

Família processa Osid por danos morais 

Agora, a família continua o processo na Justiça contra Osid por danos morais, como confirmou o advogado de Sônia, Meisson Rodrigues. A principal crítica dele às Osid é a falta de apoio psicológico à família de Antônio. "Na parte jurídica, o hospital deu todo o apoio, mas houve uma omissão da assistência social e psicológica à família. Não houve nenhuma ligação para os familiares, um acompanhamento com um psicólogo para tentar dirimir o problema que causaram, confortar a família. E a filha ainda recebeu uma forte crítica da médica no dia que foi ao hospital entender a situação. Ela disse que ele poderia ter morrido em casa, mas eles não tinham condições de montar o homecare para o pai”, pontua Rodrigues.  

Após os episódios, Sônia está inclusive com constantes crise se ansiedade e ataques de pânico, mas não tem como custear o tratamento, pois está desempregada desde o início da pandemia. Ela vive hoje da renda do marido, que também sustenta a filha do casal, de 14 anos.  

O processo judicial também demorou de ser resolvido. A juíza Luciana Carinhanha Setúbal, da 9ª Vara Cível e do Consumidor de Salvador, recusou o pedido de exumação. A magistrada afirmou na decisão que, “apesar de ser compreensível o momento difícil e doloroso que vive a família do de cujus e a legítima vontade de que sejam realizadas cerimônias fúnebres; e malgrado o reconhecimento, pela acionada, do erro noticiado, não se pode determinar a exumação de um corpo, medida extraordinária, em desacordo com a regulamentação vigente”.  

O advogado recorreu da decisão através de um agravo de instrumento relatado pela desembargadora Joanice Guimarães, que acatou o pedido. No acórdão, ela declarou que “não deixa dúvidas sobre os fatos narrados, bem como sobre a dor e o sofrimento vivenciados pela agravante e por seus familiares, em flagrante violação ao princípio da dignidade da pessoa humana”.  

O que diz a Osid? 

As Obras Sociais Irmã Dulce disseram, por meio de nota, que no dia 3 de fevereiro  - data diferente da relatada pela família de Antônio - faleceu, no Hospital Santo Antônio, o pai de Sônia, aos 83 anos. “Também no dia 03, os familiares de outro paciente que havia falecido compareceram ao necrotério do Hospital Santo Antônio para retirada do corpo para sepultamento. No momento da identificação, todavia, identificaram o corpo do Sr. A.M.M. como sendo do outro paciente. E, por um equívoco da unidade, o corpo do Sr. A.M.M. foi entregue à família do outro paciente que, por sua vez, realizou o sepultamento no cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador”, informou. 

O Hospital ressalta que “existe um protocolo que segue todas as normativas de segurança para que não ocorram incidentes como este". Após o episódio, que nunca tinha ocorrido antes, "a unidade hospitalar adotou as providências cabíveis junto às famílias e solicitou autorização judicial para a exumação do corpo”. A Osid arcou com todos os custos da exumação,  sepultamento e processo judicial.  

A morte e rituais de despedida 

A fim de entender a razão pela qual, em nossa cultura, a morte precisa desse ritual de despedida, o CORREIO recorreu à historiadora que pesquisa as representações da morte há mais de 14 anos, Luciana Onety, professora do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge). “É um rito de passagem, uma necessidade psicológica de você fazer o desligamento de um corpo, porque, enquanto existe vida, a gente acredita que a pessoa possa continuar. Psicologicamente, se a pessoa não fez esse desenlace, é como se aquilo não tivesse acontecido, porque o rito de passagem não foi feito”, explica a especialista.  

A historiadora também esclarece que esses rituais acontecem em outras fases da vida e variam a depende da cultura em que se está inserido. “Assim como a passagem da infância para a adolescência, o casamento, o velório, são celebrações que ajudam no desligamento da situação anterior e uma passagem para a próxima. E quando isso é celebrado publicamente, tem um efeito social maior”, acrescenta.  

Pela influência da religião católica, fruto da morte de Jesus Cristo, os brasileiros têm esse costume de “celebrar” a morte com o sofrimento. “A religião católica é fruto de um luto, ela vive em cima de uma morte, foi fundada para celebrar a morte de Jesus Cristo, que foi uma morte sofrida, crucificada”, conclui Luciana.