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Um mês após massacre, famílias de Suzano convivem com o luto e a dor

Folhapress | 13/04/19 - 12h39
João Antonio Ribeiro, 61, mostra foto do filho Cleiton comemorando a formatura do ensino fundamental | Folhapress

Toda vez que o relógio marca 13h, os vira-latas Pequeno e Pêti se agitam à espera de seu dono. É a partir desse horário que a dupla se acostumou a ganhar beijos, abraços e banhos.

A hora avança, os latidos ficam mais estridentes e só cessam quando o cansaço vira aviso: Cleiton não vai voltar. A cena se repete nos últimos 30 dias e tem dilacerado o motorista aposentado João Antonio Ribeiro, 61.

João é pai de Cleiton Antonio Ribeiro, 17, um dos cinco alunos mortos no massacre da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP). No atentado, que completa um mês neste sábado (13), também morreram duas funcionárias e o tio de um dos atiradores.

O primeiro mês sem o filho tem sido torturante, diz. "A coisa mais difícil é criar uma nova rotina. Toda vez que ele saía de casa, abaixava a cabeça para receber um beijo. Como tem sido difícil ficar sem isso."

João está só. Marlene, 57, mãe de Cleiton e casada com João há 35 anos, ainda não conseguiu voltar para casa. Refugiou-se na irmã, em Ferraz de Vasconcelos (Grande SP). À sobrinha Rosalina, a dona de casa explicou: "é doloroso voltar porque tudo lá em casa lembra o Cleiton".

João explica que a morte de Cleiton reabriu uma ferida do casal. Sete anos antes de o jovem nascer, a irmã mais velha dele morreu ainda criança devido a uma lesão no cérebro. "Voltamos a ficar sozinhos. Dessa vez é difícil de se conformar porque não foi por doença", afirma o aposentado.

Ele agora tenta voltar a viver com a mulher. "Já tirei todas as fotos dele da parede. Quem sabe assim ela consiga voltar logo para casa."

Quem também se lembra bem de Cleiton é o aposentado Lauro Takechi Umezu, 62. Foi ele quem levou um computador de presente a pedido de sua mulher para o menino, visto por ela como "um prodígio". "Veja só a ironia do destino. Eles agora estão juntos lá no céu olhando por nós."

Lauro, os três filhos e uma neta perderam Marilena Umezu, 59, professora de filosofia e coordenadora da Raul Brasil.

Na casa onde moravam havia apenas três anos, tudo foi planejado pela educadora. "Não mexi em nada. Quero continuar tendo a sensação da presença dela", afirma.

O viúvo também está só em casa. "Eu era ateu e fui convencido a acreditar, a ter fé por ela. E é por ela que vou tentar permanecer firme", diz Lauro.

O aposentado encontra alento na maior novidade entre os Umezus. "Minha segunda netinha vai nascer. Será um conforto enorme", afirma.

Já a aposentada Maria Helena de Melo Oliveira, 71, não consegue nem pronunciar o nome dos assassinos que tiraram a vida de seu "tesouro". "Não tenho pena. Eles acabaram com a minha família."

Maria é mãe de Eliana Regina de Oliveira Xavier, 38, a inspetora da Raul Brasil conhecida como "tia linda" e muito próxima de Marilena.

Eliana estudava pedagogia e era apaixonada por sua função. Desde o término de seu casamento, em 2016, vivia com a mãe, os filhos (um menino de 12 e uma menina de 16 anos), a irmã e a cadela Belinha. Na casa da família, ainda estão espalhados os brincos de Carnaval de Eliana e as apostilas da universidade.

Para enfrentar o luto por Caio, 15, os Oliveiras montaram em seu quarto um memorial. A irmã mais velha, Aline, 20, escreveu na parede trechos de "Eu sei que vou te amar", letra de Tom Jobim. Valéria, 19, chama o irmão de seu "eterno bebê". A cama do garoto continua forrada por uma colcha do Corinthians e, sobre ela, dorme a gata Nina.

Elisangela de Oliveira Cordeiro, 39, mãe do adolescente, ainda se pega chamando o filho para almoçar. "Eu já fiz isso várias vezes. Quando cai a ficha, eu choro muito."

Caio, dizem as irmãs, era leal. Morreu ao lado do amigo Kaio, 15, quando pegava uma autorização na secretaria para virar Jovem Aprendiz. "Eu insisti tanto para ele buscar essa declaração naquele dia. Não quero me culpar por isso", afirma Valéria.

Os demais familiares de vítimas foram procurados, mas não quiseram dar entrevista. Disseram não ter mais condições de falar do massacre.

Camila dos Santos, mãe de Douglas Murilo, 16, tirou a caçula da Raul Brasil. Gercialdo, pai de Samuel Melquiades, 16, tem se dedicado a pregar mensagens de conforto aos jovens.

elly Limeira, mãe de Kaio Lucas, diz que ainda tenta voltar à rotina. A reportagem não localizou parentes de Jorge Antonio Morais, 51, empresário morto pelo sobrinho Guilherme Taucci, 17.

Todas as famílias, agora, terão que decidir se aceitarão ou não a indenização proposta pelo governo. João diz que encontrou a resposta no bilhete perdido na Bíblia de seu filho, Cleiton, que dizia "paciência".

Escola ganha projeto arquitetônico que prevê jardim e tatame

A Escola Estadual Raul Brasil deve ter seu projeto arquitetônico repaginado, proposto à secretaria de Educação de São Paulo e a ser avaliado pelo governo, pela direção da unidade, por pais e por alunos.

Todas as instalações propostas têm uma ligação afetiva com Suzano. Estão previstas cerejeiras, por exemplo, que são um símbolo para imigrantes japoneses -a cidade tem uma das maiores comunidades nipônicas do estado- e tatames, referência à política inclusiva do município na prática de artes marciais.

Segundo Rossieli Soares, secretário de Educação da gestão Doria (PSDB), a ideia é que "a Raul Brasil seja uma nova escola, mas sem perder a sua identidade". O secretário diz que está nos planos um laboratório de inovação. "O recurso para as obras virá de parcerias com a iniciativa privada", afirma Rossieli.

Aberto seis dias depois do atentado, o colégio ainda não conseguiu cumprir o calendário pedagógico à risca. Aulas continuam intercaladas com rodas de conversa, palestras e trabalhos culturais.

Beatriz de Souza Reis, 16, presidente do Grêmio Estudantil da Raul Brasil, conta que os alunos foram avisados de que não terão avaliações com nota neste bimestre. "Vejo muitos colegas chorando no pátio e pelos cantos. Vai levar muito tempo para tudo voltar ao que era antes."

O muro do colégio fala por si. Entre as centenas de mensagens de carinho e conforto, um grafite que estampava o rosto das sete vítimas mortas na escola (cinco alunos e duas funcionárias) foi apagado. Segundo a secretaria de Educação, o pedido partiu de alunos e professores.

Ainda não se sabe quantos professores pediram afastamento nem o número exato de alunos transferidos da escola. À Folha, o secretário diz que tem conhecimento de duas transferências de docentes. Os alunos ouvidos pela reportagem citam dez casos.

Para Ana Lúcia Ferreira, diretora do sindicato dos professores de Suzano, o futuro da Raul Brasil preocupa por falta de propostas pedagógicas claras. Ferreira defende um planejamento pedagógico transparente e embasado em análises de especialistas. A sindicalista também demanda que os pais, os professores e os alunos sejam ouvidos.

Uma professora que leciona no 6º e no 9º do ensino fundamental conversou com a Folha sob a condição de anonimato. Ela diz que a medida mais acertada seria transferir a Raul Brasil de endereço. "O clima é de pressão e intimidação. Não haverá trabalho psicológico algum que mude o que aconteceu ali. Não adianta, como fizeram, pintar o piso do saguão. A tragédia está impregnada."

Duas preocupações têm tirado o sono dos pais. "Queremos a certeza de que o apoio psicológico vai funcionar sem interrupções e de que nossos filhos ficarão seguros lá", afirma Juliana Ribeiro, 35, porta-voz da comissão de pais.

A reportagem esteve na última semana em frente ao colégio. Alunos e professores têm usado um portão lateral. O movimento é controlado por um funcionário. A reportagem apurou que todos os alunos e professores começaram a ser fotografados e usarão um cartão com identificação e foto para entrar e sair na escola.

O secretário de Educação, Rossieli Soares, disse ser contra o fechamento e a militarização da Raul Brasil. Ele afirmou que foram contratados psicólogos para atender na escola por dois anos.