Brasil

Hipótese de corrupção é mais uma peça no quebra-cabeça da morte de professor

Correio Braziliense | 08/02/20 - 09h09
Arquivo Pessoal

Agentes da 2ª Delegacia de Polícia (Asa Norte) investigam se um suposto esquema de corrupção no Centro de Ensino Fundamental 410 Norte tem relação com a morte de Odailton Charles de Albuquerque Silva, 50 anos. A situação foi narrada pelo professor por meio de áudio do WhatsApp. Ele afirmou que buscaria documentos na instituição em 30 de janeiro e, depois, abriria uma denúncia contra a Coordenação Regional de Ensino. Neste mesmo dia, ele passou mal ao ser envenenado pela substância aldicarbe, presente em raticidas como o chumbinho, e morreu na última terça-feira. Em nota, a direção da unidade disse que nenhum servidor “serviu qualquer coisa” ao docente.

Na mensagem enviada para amigos, Odailton Charles afirmou que tinha provas para denunciar “irregularidades” no CEF 410, como documentos particulares, extratos bancários e áudios. “Vou fazer uma denúncia formal contra a (Coordenação) Regional de Ensino por conta do dinheiro que deixei na escola e nunca repassaram para mim. Seguraram o dinheiro e agora estão utilizando da forma que eles querem. (...) Acho que está havendo rachadinha”, disse. “Eu indiquei dois ou três empreiteiros e eles não aceitaram de jeito nenhum. Seguraram o dinheiro até agora em janeiro. Agora está lá de vento em popa, liberando dinheiro à vontade lá”, acrescentou o professor .

O Correio apurou que, no ano passado, o CEF 410 Norte recebeu da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF) dois repasses financeiros, por meio do Programa de Descentralização Financeira e Orçamentária (PDAF): o primeiro em 14 de maio, no valor de R$ 27,7 mil; o segundo, de R$ 16,2 mil, liberado para a direção em 19 de dezembro. O montante total, de 1º de janeiro de 2019 até 25 do mês passado, foi de R$ 43,9 mil. A reportagem entrou em contato com a pasta, mas não obteve resposta de como o dinheiro público foi gasto.

Nesta sexta-feira (7/2), a direção do CEF 410 Norte se pronunciou pela primeira vez desde que o caso foi divulgado. “A nova diretoria assumiu a gestão em 2 de fevereiro sem nenhum processo de transição com a gestão anterior, uma vez que o professor (Odailton) Charles estava ausente da escola desde 19 de dezembro de 2019”, informou. A data citada pela unidade de ensino é a mesma em que a segunda verba foi repassada. A gestão não comentou, contudo, as supostas denúncias de corrupção na unidade.

A 2ª DP seguiu escutando testemunhas do caso nesta sexta-feira (7/2). Os policiais ouvirão servidores, funcionários e três policiais militares que passaram na escola em 30 de janeiro, além da equipe do Corpo de Bombeiros que socorreu Odailton Charles ao Hospital Regional da Asa Norte.

Quebra de silêncio

A direção do CEF 410 Norte lamentou a morte do professor Odailton Charles e ressaltou que não tinha se pronunciado pois “optou até o momento pelo único refúgio seguro na esfera humana, o silêncio”. “Diante dos últimos eventos, a direção entende ser agora o momento para pontuar, ainda que informalmente, alguns ocorridos naquele fatídico dia, até o desfecho completo da investigação.”

A instituição indicou que nenhum servidor ofereceu qualquer bebida ao professor. “A única substância líquida que o professor Charles ingeriu foi água, o que o fez por vontade livre, colhendo-a na sala dos professores diante de outras pessoas que ali estavam. Nas dependências da escola, antes e durante a chegada e permanência do professor Charles, encontravam-se aproximadamente 14 pessoas, entre professores, servidores terceirizados e pedreiros, incluindo três policiais militares do batalhão escolar”, informou.

Diante do relato feito pelo docente a uma amiga da escola, afirmando ter sido mal recepcionado pela funcionária que supostamente lhe ofereceu o suco de uva, a gestão destacou que ele “não foi recebido com hostilidade na escola”. “O professor Charles a todo tempo que permaneceu na escola, aproximadamente duas horas, antes de passar mal, em nenhum momento ficou sozinho com a servidora apontada (como a pessoa que teria dado o suco de uva ao docente)”, pontuou.

“Quando o professor Charles começou a passar mal, foi imediatamente socorrido. A servidora apontada foi a responsável por determinar que ligassem para a emergência. (...) A referida servidora foi a responsável pelas ligações para a esposa do professor Charles, assim como para os amigos. Todos os procedimentos iniciais de socorro ao professor foram prestados pelo vigilante da escola, pela professora apontada e outros servidores que ali se encontravam até a chegada dos bombeiros”, completou a gestão no texto.

Por meio de nota oficial, o Sindicato dos Professores (Sinpro) informou que “lamenta profundamente” o falecimento do professor Charles e que em nenhum momento se manifestará a respeito do ocorrido. “Assim como toda a sociedade, aguardamos o resultado das investigações e que todas as medidas possam ser tomadas pelo órgão competente, ou seja, a Polícia Civil”, frisou. A SEEDF não comentou o caso.

Investigação

O laudo das roupas de Odailton Charles ficou oficialmente pronto na tarde desta sexta-feira (7/2). O exame de peritos do Instituto de Criminalística (IC) confirmou a presença de aldicarbe e de um relaxante muscular no vômito presente nas vestes. Exame preliminar do Instituto de Medicina Legal (IML) também apontou o aldicarbe na corrente sanguínea dele. Os médicos legistas s especialistas realizam outros exames que podem auxiliar nas investigações. Estes laudos devem sair em até 30 dias.

A 2ª DP pediu uma análise minuciosa para confirmar a presença de suco de uva, mas não foi possível determinar se o professor ingeriu ou não o líquido. Apesar disso, investigadores responsáveis pelo caso não descartam a hipótese de ele ter consumido a bebida. A presença da substância venenosa no vômito nas roupas do professor indica que ele ingeriu o aldicarbe.

Os policiais trabalham para confirmar ou descartar a versão por meio de outros elementos, como depoimentos de testemunhas. A principal hipótese é de que o docente tenha sido envenenado dentro do CEF 410 Norte, tanto pela cronologia dos fatos narrados por testemunhas quanto pelas informações dos laudos do IC e do IML — uma vez que os efeitos do composto costumam se manifestar em 30 minutos.

Veneno

O aldicarbe é proibido no mercado por ser potencialmente perigoso. O composto pode ser encontrado em raticidas, como o chumbinho. A substância pode causar danos e até a morte de uma pessoa, se for ingerida, inalada ou exposta a pele. Os sintomas aparecem a partir de 30 minutos após o contato, gerando diarreia, vômitos, convulsões e perda de consciência. O produto, que pode ser insípido — ou seja, não ter gosto — não é encontrado para venda e só pode ser adquirido pelo mercado ilegal.

Autonomia 

O PDAF dá autonomia aos gestores escolares para custear pequenas despesas, como reparos simples, reformas, aquisição de materiais de consumo e contratação de serviços e pessoas físicas.

Memória

Projeto foi destaque 

Matéria publicada em novembro de 2006 no suplemento Super!, do Correio Braziliense, destacava um projeto elaborado por Charles quando ele era professor de ciências sociais da Escola Classe 306 Norte. Na iniciativa, buscando estimular um maior conhecimento sobre a história de Brasília, ele incentivou os estudantes a visitarem monumentos da cidade e, depois, a construírem maquetes das obras. As peças acabaram integrando uma exposição. “Muitas vezes, a gente sai de casa para a escola e da escola para casa. Acabamos não conhecendo Brasília de verdade”, disse o educador, à época, para explicar de onde tinha tirado a ideia.

O projeto estimulava os alunos a serem arquitetos. Durante um mês, eles reproduziram nas maquetes os monumentos da cidade. Antes de tudo, as crianças precisaram pesquisar sobre as edificações para descobrir o significado de cada uma delas. Em seguida, o professor incentivou que eles fossem conhecer pessoalmente as obras junto às próprias famílias.

Escola reabre as portas 

Fechado desde a morte de Odailton Charles, o CEF 410 Norte reabriu as portas na manhã desta sexta-feira (7/2). Representantes da Secretaria de Educação e do Sindicato dos Professores (Sinpro) se reuniram com a equipe da unidade para tratar sobre a pauta pedagógica e sobre a comoção gerada pelo envenenamento do ex-diretor. Uma das orientações passadas aos educadores é de não conversar sobre o assunto com equipes de reportagem.

Entretanto, na condição de anonimato, alguns funcionários da unidade concordaram em conversar com a equipe do Correio. “Essa é uma situação muito difícil e temos que lidar com ela com toda a comunidade escolar, que inclui pais e alunos”, disse um dos trabalhadores. “Esperamos que a verdade, independentemente de qual seja, apareça logo”, comentou outra funcionária.

Outro funcionário descreveu que a investigação da Polícia Civil não entrou na pauta da reunião. “Conheci Charles há um bom tempo e ele que ajudou a reorganizar essa escola”, frisou. De acordo com ele, os professores participantes da reunião debateram sobre diversos temas e fizeram orações religiosas. “Todos aqui precisamos de apoio. Os órgãos garantiram atendimento psicológico e isso é necessário, porque todos somos seres humanos”, reforçou.

A reportagem entrou em contato com o Sinpro, que negou que a morte do professor tenha entrado no debate. “Teremos reunião, mas a pauta é pedagógica. O caso do professor está em investigação na Polícia Civil”, afirmou o diretor da entidade, Samuel Fernandes. Desde a morte de Charles, a Secretaria de Educação ressalta que apenas vai se pronunciar sobre o caso após a finalização do inquérito.

O Correio apurou que, na próxima segunda-feira, a Secretaria de Educação e o Sinpro vão prestar atendimento a professores na escola. O sindicato vai oferecer apoio psicológico aos docentes que se sintam lesados ou mal emocionalmente por causa da morte de Charles. Funcionários da escola afirmaram que a volta às aulas na unidade está mantida para segunda-feira.