Saúde

Matemática ajuda médicos a prever risco de morte em cirurgia cardíaca

Folhapress | 13/10/18 - 20h07
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Cansaço e fraqueza são alguns dos sintomas da febre reumática, doença inflamatória que pode ter efeitos muito danosos nas válvulas do coração. Além de remédios, o tratamento pode incluir cirurgia, necessária em cerca de um terço dos pacientes. Mas há um grande porém.

Geralmente os candidatos à operação são pacientes graves, às vezes com uma ou mais operações cardíacas já realizadas. Asma e diabetes também podem aparecer como complicadores. Como separar quem realmente pode se beneficiar com a cirurgia de quem tem alta chance de morrer durante o procedimento?

Pesquisadores ligados ao Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP (InCor), à Universidade de Coimbra (Portugal) e ao Impa (Instituto de Matemática Pura e a Aplicada), no Rio, elaboraram uma calculadora de risco que responde à pergunta.

A conclusão, com base em dados de quase 3.000 pacientes operados entre 2010 e 2015, é que os fatores que mais críticos são tamanho do átrio esquerdo (cavidade do coração), nível de creatinina (metabólito sanguíneo que pode apontar problemas renais), realização de procedimentos anteriores nas válvulas cardíacas e hipertensão pulmonar.

O artigo científico foi publicado em julho deste ano na revista Plos One. Omar Mejia, cirurgião do InCor e um dos autores do estudo, explica que a febre e a cardiopatia reumáticas têm origem em infecções, como a de garganta, que não foram bem resolvidas. Ao combater bactérias, células do sistema imune formam complexos que se depositam nas válvulas cardíacas, que passam a sofrer agressões do organismo, acumulando lesões e perdendo função.

A doença é mais prevalente em países subdesenvolvidos, por causa da maior dificuldade de acesso adequado a antibióticos. Estima-se que 300 mil casos surjam e que 200 mil pessoas morram todo ano por causa da doença.

Quando o caso é cirúrgico, a reparação das válvulas é o tratamento ideal, mas o mais difícil. As válvulas podem ainda ser substituídas por próteses biológicas ou metálicas.

Ao estabelecer uma maneira eficaz de medir o risco da operação, é possível tomar decisões mais conscientes, como antecipar uma cirurgia para aproveitar condições favoráveis ou mesmo não realizá-la, dado o risco de morte. "É importante discutir com o paciente e com sua família a fim de esclarecer o que pode acontecer", diz o médico.

O problema é que não é tão simples saber quem corre maior risco. Uma escala de avaliação mais simplificada poderia atribuir para cada variável um determinado número de pontos. Por exemplo, se a pessoa tem mais de 50 anos, ganha um ponto; se tiver mais de 70, dois, e mais de 80, três; se for diabética, leva mais dois pontos; se asmática, mais um; problema no rim, mais dois. No fim, o somatório dá uma ideia de quão grave é o caso.

Nem sempre, porém, a situação pode ser avaliada com uma conta de adição. Isso porque a interação entre variáveis pode mudar drasticamente o prognóstico do paciente. Num exemplo hipotético, duas condições que isoladamente já agravariam o quadro podem, em conjunto, ter efeito ainda mais grave do que o de uma mera soma.

Se considerarmos que dezenas de variáveis podem influenciar no prognóstico e que as combinações podem ser bem mais complicadas do que no exemplo acima, há uma clara limitação na capacidade humana de lidar com essa quantidade de informação.

É aí que entra em cena Jorge Zubelli, pesquisador do Impa e que coordena um grupo que busca aplicar conhecimento matemático em áreas que vão da saúde ao setor financeiro.

Para resolver a questão, foram usadas ferramentas de ciências de dados. "Trata-se de técnicas matemáticas para fazer uma validação ou previsão em situação complexa", diz.

"Há um movimento natural de inserir essas ferramentas na medicina, como no caso do diagnóstico por imagem. A área pode integrar também conhecimentos de diferentes tipos de exames, como os de sangue e os bacteriológicos ao fazer essa correlação cruzada para obter o melhor do mundo quantitativo", afirma.

Para resolver esse problema de cálculo de risco, duas abordagens se destacaram: a floresta aleatória e a rede neural. Nas redes neurais, parâmetros são dados aos "neurônios" de entrada no modelo e a informação é recuperada nos "neurônios" de saída.

Só que, no meio do caminho, acontece muita coisa. Por cada camada que a informação passa, ela é distribuída para os neurônios seguintes com diferentes intensidades. O peso é reajustado, gerando um refinamento da informação. Quanto mais camadas, mais contas, e mais acurado o resultado final.

No caso das florestas aleatórias, o primeiro passo é escolher ao acaso um punhado de características possivelmente importantes (como peso e histórico de asma, por exemplo) e estimar, baseado nelas, a probabilidade de a pessoa sobreviver ou não à cirurgia. Essa é uma árvore de decisão.

Outras árvores se baseiam em fatores diferentes, e, por isso mesmo, podem tomar decisões distintas. O que interessa é que a aleatoriedade na "forma" das árvores e o grande número delas reduz vieses.

Cada árvore tem um voto, e o resultado final é escolhido pela floresta. Daí é possível aprender quais fatores são importantes para predizer o risco de mortalidade.

No caso, a floresta aleatória teve o melhor desempenho entre os modelos usados –nota de 98,2 em uma escala que vai até 100. A rede neural vem na sequência, com 97,3.

A melhor calculadora estrangeira teve nota 87,6. Uma das explicações para o sucesso da RheScore (nome da nova calculadora) é o treino do algoritmo com dados brasileiros, algo até então inédito.

"Não enxergamos o algoritmo por dentro, mas sabemos que ele funciona. Não podemos esquecer, no entanto, que os índices de risco calculados valem para aquele tipo de paciente –não dá para usar o RheScore para avaliar risco de ponte de safena. Por mais que os fatores de risco sejam parecidos, os pesos podem ser muito diferentes", diz Mejia.

Os próximos passos envolvem o aperfeiçoamento da calculadora com dados de outros hospitais, tornando-a mais útil e abrangente.

15 milhões
de pessoas no mundo sofrem com cardiopatia reumática

300 mil
é o número de novos casos por ano da doença

200 mil
é o número de mortes ao ano no mundo graças à condição

US$ 90 milhões
(ou R$ 346 milhões) é o gasto estimado anual no sistema público brasileiro gerado por febre reumática e cardiopatia reumática

98,2%
foi a performance da calculadora de risco brasileira; a melhor estrangeira teve índice de 87,6%