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Mulher é alvo do MPF após sugerir morte de homossexuais no Twitter

BHAZ | 10/09/20 - 08h48
Marcelo Camargo/Agência Brasil

O MPF (Ministério Público Federal) ingressou com uma ação civil pública contra uma moradora de Belo Horizonte por conta de mensagens publicadas no Twitter. A mulher incitou a morte de homossexuais em publicações realizadas em dezembro de 2018. Agora, o MPF pede que ela seja condenada a pagar indenização de R$ 50 mil, além de fazer uma retratação pública na mesma rede social.

Segundo a PRDC (Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão), a moradora da região Centro-Sul da capital perguntou a outra internauta se a “escopeta” dela já estava preparada, quando falou da morte de homossexuais. No post, ela ainda adicionou emojis de risada e deboche.

Por conta da postagem, o MPF pede que ela seja condenada por danos morais coletivos no valor de R$ 50 mil e que publique, de modo público, uma nota de retratação pelo comentário anterior.

De acordo com a ação, “a conduta da demandada não se restringiu ao mero desferimento de ofensas à honra de um grupo social, tendo incorrido em verdadeira incitação à violência”.

Ao propagar o ódio e a violência contra determinado grupo de pessoas que já se encontram em posição de vulnerabilidade social, a mulher extrapolou os limites da liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, praticando ato que tanto pode ser considerado crime [artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”] quanto violação a dispositivos legais e constitucionais.

Momento histórico

A ação lembra o momento histórico em que os fatos ocorreram: após a campanha abertamente discriminatória contra minorias do então candidato a presidente da República, os apoiadores dele não se incomodavam em expressar publicamente preconceitos raciais e sociais.

Foi nesse contexto que a mensagem da ré acabou ganhando ampla visibilidade, sendo reproduzida inclusive por veículos de imprensa tradicionais. Tal repercussão acabou gerando o compartilhamento do comentário por diversas páginas, o que propagou ainda mais os efeitos nocivos da mensagem. Naquele momento, as ameaças contra as pessoas LGBTQI+ geravam insegurança e temor quanto aos possíveis retrocessos na garantia dos direitos e liberdades já reconhecidos.

“Análise de dados promovida pelo Atlas da Violência de 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), apontou para o aumento da violência letal contra pessoas LGBTI+ a partir de 2016”, relata a ação, para acrescentar que, embora o Brasil não tenha estatísticas oficiais e sistematizadas relativas à violência contra a população LGBTI+, “o Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras de 2019, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), dá conta que 466 pessoas trans foram assassinadas no Brasil entre 2017 e 2019”, com o “aumento do discurso de ódio e ameaças à comunidade LGBTI+, num contexto de naturalização da violência”.

“É importante destacar que tal tipo de agressão excede o âmbito da integridade física, pois impacta no equilíbrio psicológico das vítimas, ao apontar para a sua exclusão e segregação da sociedade. Não podemos esquecer que o Brasil é o país em que mais se mata homossexuais no mundo. Mas, para além disso, o ordenamento jurídico brasileiro veda expressamente condutas discriminatórias caracterizadoras de discurso de ódio, conforme se depreende do art. 3º, inciso IV, da Constituição”, afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Helder Magno da Silva.

Racismo

O MPF lembra que, recentemente, a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) vem se firmando inclusive no sentido de reconhecer a homofobia como crime de racismo.

Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e o Mandado de Injunção 4.733, o Plenário da Suprema Corte decidiu que “até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei 7.716, de 08/01/1989”.

Isso porque, para o STF, “o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito”.

Dignidade humana

A ação também lembra que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, conforme artigo 3º, inciso IV, da Constituição.

“Pouco importa tratar-se de homem ou mulher, preto ou branco, religioso ou ateu, hétero ou homossexual. Todos têm o direito de viver como desejarem, especialmente na intimidade, sem que seja permitido a ninguém incitar ao ódio por tais escolhas e, principalmente, pelas características pessoais de cada um, que são passíveis de restrição apenas na medida em que violem direito alheio. Ignorar tais direitos é despir o outro de direitos que refletem sua dignidade humana, o que não somente é intolerável, mas também inconstitucional”, afirma o procurador da República.

A ação ainda registra que o direito à igualdade e a proteção contra a discriminação de qualquer espécie estão consagrados pela legislação internacional, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dos quais o Brasil é signatário.

Para o Ministério Público Federal, o caráter homofóbico do discurso da requerida, ao propor a eliminação de pessoas homoafetivas de ambientes públicos e incitando o assassinato e a “caça aos veados”, além de extrapolar os limites do exercício regular do seu direito de livre manifestação do pensamento, desrespeitou direitos fundamentais decorrentes da dignidade humana, impondo-lhe, com isso, o dever de indenizar os danos morais causados a tal coletividade.

“É importante atentar para o fato de que as omissões perante episódios de intolerância em face de determinada coletividade acabam por referendá-los, negando os mais básicos princípios e valores que regem a República orientada pela nossa Constituição. Portanto, é necessário enfrentar tais injustiças a fim de demonstrar a reprovabilidade das condutas opressoras. E é no campo da prestação jurisdicional que a aplicação de tal entendimento tem sua mais relevante materialização, na medida em que a ‘alta de proteção judicial contra essas ações simbólicas’ também representa “um consentimento, uma cumplicidade com esta violência diuturna”, conclui a ação.

As possíveis repercussões criminais da conduta da mulher encontram-se sob análise do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. A ação civil pública foi distribuída à 13ª Vara Federal de Belo Horizonte.