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Opinião: "Cacá Diegues denunciou ‘patrulha ideológica’ e retratou transformações do Brasil"

Em 16 de Fevereiro de 2025 às 10:15

Jornalista Luiz Zanin Oricchio:

"Com a morte de Cacá Diegues, vai-se um dos últimos remanescentes do núcleo duro do Cinema Novo, o mais importante movimento cinematográfico do País.

O grupo, formado por jovens ousados e muito politizados, vivendo a efervescência cultural dos anos 1960, tinha, como gostava de dizer Cacá, objetivos 'muito modestos': 'Queríamos ‘apenas’ mudar a história do cinema brasileiro, a história do cinema mundial e, se possível, a história de todo o planeta'.

Para mudar tanta coisa, era preciso primeiro olhar para o seu quintal, o Brasil. E este era um emaranhado complexo de contradições. Parecia, no final dos anos 1950, um país brilhante e com grande futuro pela frente; por outro lado, as desigualdades sociais eram visíveis por toda parte, mesmo para quem preferia fechar os olhos ou desviar a vista.

Assim, sobre essas contradições foi construído esse cinema, para o qual Cacá forneceu alguns alicerces sólidos. Integrante do Centro Popular de Cultura da UNE, participou da obra coletiva Cinco Vezes Favela (1962), histórico longa-metragem de episódios. Nele, assina o 3º episódio, Escola de Samba, Alegria de Viver. A favela é um dos locus da desigualdade social brasileira, assim como o sertão será o outro. Sobre esses dois polos - a cidade e o campo - se alinham as forças críticas e criativas do Cinema Novo.

Em seu longa de estreia, Ganga Zumba - Rei dos Palmares (1963-1964), com Léa Garcia e Antônio Pitanga, celebra a rebelião contra um status quo opressor e que deveria ser superado. Tema de fundo também do seu longa seguinte, A Grande Cidade (1965), que mostra a situação do migrante confrontado aos valores de uma cidade e uma cultura que não são suas.

São filmes que se afirmam, como linguagem, na paisagem brasileira do Cinema Novo, mas não deixam de mostrar reflexos do neorrealismo italiano, uma das fontes de inspiração dos cinemanovistas.

Em seu longa seguinte, Os Herdeiros (1968-1969), feito já em plena ditadura, Cacá adota a linguagem alegórica característica do período. Era uma forma de retratar um país em que o absurdo parecia permear todo o tecido social. Mas, também, estratégia para driblar a censura, com filmes de “mensagens” nada explícitas, e que tinham de ser decodificadas de uma trama complexa. Mesmo assim, Os Herdeiros (cujo título inicial “O Brado Retumbante” foi vetado) não passou pelo crivo dos censores.

Cacá passa dois anos fora do país e quando volta, em 1971, encontra o país ainda imerso na fase mais cruel da ditadura. Entre 1972 e 1973, faz dois filmes mais leves, em que a crítica social se faz mais sutil, Joana Francesa, com Jeanne Moreau, e Quando o Carnaval Chegar, com Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia. A relação de Cacá com a música se fará sentir em filmes posteriores como Veja Esta Canção Orfeu.

Xica da Silva (1975), com Zezé Motta, foi um grande sucesso de público. Era já outra a fase de Cacá e de outros cineastas. O Cinema Novo, em sua vocação crítica, sofrera com o endurecimento do regime do AI-5. Buscara a alegoria como remédio, mas suas propostas iniciais ficaram pelo caminho no pós-1968. Agora, com a Embrafilme, era uma época de buscar o apoio do público com obras mais populares, embora sempre fundadas na cultura brasileira. Era a época do chamado 'nacional-popular' e Xica da Silva, história da escrava que usando o corpo e a inteligência se torna poderosa na Diamantina colonial, era um caso emblemático de como o povo pode lutar contra um opressor muito mais poderoso e cruel. Xica vendeu mais de 4 milhões de ingressos.

Essa saída para o nacional-popular não se deu sem controvérsias, e Cacá esteve à frente da resistência a críticas que vinham da esquerda ortodoxa. Denunciou o que chamou de 'patrulhas ideológicas', uma polêmica famosa na época e desencadeada a partir de uma entrevista dada por Cacá ao Estadão em 1978. Era o Brasil ainda imerso na ditadura, buscando se redemocratizar sem saber exatamente como fazê-lo.

O belo Chuvas de Verão (1977) é uma espécie de intermezzo temático, agora dedicado à questão da velhice, muito pouco representada no nosso cinema, e que conta com Jofre Soares como protagonista, um ator-símbolo do Cinema Novo.

Outro sucesso veio com Bye Bye Brasil (1979), que teve público superior a 2 milhões de espectadores. Para muita gente, é o melhor filme de Cacá Diegues e mostra um Brasil em transformação. Roadmovie circense, a 'Caravana Rolidei' conta com um brilhante José Wilker à frente. O filme espelha o momento. A ditadura começa a enfraquecer, já existe uma abertura à vista, mas que ainda demorará alguns anos para chegar. Além disso, o antigo Brasil, com a 'modernização conservadora' dos militares, já não é mais o mesmo. Nunca mais será. É o que indicam as cenas finais, ao som da bela canção de Chico Buarque que dá título ao filme.

Talvez o impulso inicial do Cinema Novo e a fase Embrafilme sejam os núcleos mais importantes da trajetória de Cacá. Que, no entanto, continuou a criar, com obras às vezes adaptadas às mudanças no mercado cinematográfico e da própria realidade do país. Quilombo (1983) é um filme de grandes recursos, mas fica a dever em relação à sua fonte originária, Ganga Zumba, realizado na fase épica do Cinema Novo.

Dias Melhores Virão (1989) expressa no título o sentimento do artista e inova na distribuição: foi exibido primeiro na televisão e só depois chegou às salas de cinema. Era uma época em que o cinema brasileiro entrava em recesso até ser completamente desmantelado no breve e destrutivo governo Collor.

Veja Esta Canção (1992) foi uma saída para essa época de indigência. Produzido pela TV Cultura, esse filme de episódios baseados em músicas populares como DrãoVocê É LindaPisada de Elefante e O Samba do Grande Amor, buscava reforçar a então parte fraca da cultura nacional, o cinema, com a sempre forte música popular do nosso país. Um filme simples, bonito, que cumpriu sua missão naquele momento de escassez.

Tieta do Agreste (1996) é uma tentativa de adaptação da famosa obra de Jorge Amado. Orfeu retoma a obra de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, que já havia sido adaptada para o cinema pelo francês Marcel Camus. Deus é Brasileiro (2002) é uma comédia inspirada em obra de João Ubaldo Ribeiro, e O Maior Amor do Mundo (2006) traz de novo a questão da identidade através da história de um homem criado no exterior que volta ao país na tentativa de encontrar seus pais biológicos.

Cacá Diegues estava produzindo aquele que seria seu 20º filme, Deus Ainda é Brasileiro, quando a morte o surpreendeu."

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