A descoberta de um suspeito de assassinato por meio do DNA, 11 anos após o crime, reabriu a discussão em torno do uso de dados genéticos para a solução de delitos.
O assunto faz parte do pacote anticrime do ministro da Justiça Sergio Moro e voltou à tona, na semana passada, quando a polícia identificou o possível responsável pela morte de Rachel Genofre, 9, cujo corpo foi encontrado numa mala na rodoviária de Curitiba (PR), em novembro de 2008.
O suspeito é Eduardo dos Santos, 52, preso por outros crimes desde 2016 em Sorocaba (SP), mas que até então não tinha sido alvo da investigação pela morte de Rachel. O caso só foi desvendado porque Santos teve o DNA coletado na prisão recentemente. Quando seus dados foram incluídos pela polícia paulista no Banco Nacional de Perfis Genéticos, a equipe do Paraná conseguiu cruzá-los com o material coletado na época do delito, há mais de uma década.
A polícia diz que há 100% de compatibilidade entre o DNA do suspeito e o material coletado no corpo de Rachel, estuprada e agredida antes de ser morta por asfixia. "Ele já está condenado porque não há como ele negar a autoria desse crime", afirmou o delegado-geral adjunto da Polícia do Paraná, Riad Braga Farhat, em coletiva de imprensa no último dia 19.
Na última terça-feira (24), investigadores informaram que, em depoimento, Santos confessou o crime. Ele teria contado à polícia que se passou por produtor de TV para atrair a criança.
A identificação, no entanto, é questionada por especialistas, que apontam ser inconstitucional a coleta compulsória do material genético, já que, mesmo condenado, ninguém seria obrigado a produzir provas contra si mesmo em uma investigação. A questão é comparada ao bafômetro, cujo teste não é aplicado obrigatoriamente aos suspeitos de dirigirem alcoolizados.
A resolução do caso Rachel foi comemorada no Twitter pelo ministro Moro. A ampliação da coleta de material genético tem sido uma de suas bandeiras. O plano é de recolher dados de 65.000 pessoas em 2019 -atualmente, são cerca de 28.000 condenados cadastrados.
Mas a proposta final é de coletar 750.000 perfis genéticos em três anos, número próximo ao da população carcerária do país. Para isso, é preciso alterar lei de 2012, que rege o banco de dados, item que faz parte do pacote anticrime, em trâmite na Câmara dos Deputados.
Atualmente, somente os condenados por crimes hediondos e por violência grave são obrigatoriamente submetidos à identificação do perfil genético, com extração de DNA.
A ideia de Moro é incluir no banco os dados de todos os que cometeram crimes dolosos (com intenção de matar), mesmo que haja recursos pendentes. Quer ainda que presos não identificados o sejam enquanto cumprem pena e institui falta grave ao condenado que recusar a coleta.
A lei atual mantém em sigilo o banco que armazena os dados e prevê que a polícia deve pedir ao juiz o acesso aos dados quando existir investigação em aberto. A exclusão do perfil genético ocorre hoje de maneira automática, no mesmo tempo em que prescreve o crime.
O ministro quer ampliar esse prazo para 20 anos, contados a partir do cumprimento da pena, independentemente do crime. A exclusão dos dados dependeria de pedido do interessado. O projeto ainda prevê a coleta de impressões digitais e, quando possível, de íris, face e voz - neste caso, o texto diz que podem ser colhidos dados de presos provisórios e definitivos.
O debate em torno do assunto rendeu discussões na comissão da Câmara que avalia a proposta. Houve consenso em apenas um ponto: a taxa de elucidação dos crimes no Brasil é baixa, mas não se sabe ao certo a eficácia e a relação custo-benefício da ampliação do método científico. Até maio, o banco brasileiro de perfis foi usado em 825 investigações criminais e recebeu investimento de cerca de R$ 9 milhões.
Além do alto custo -cada kit de coleta custa R$ 30, valor que, multiplicado pela meta de Moro, somaria ao menos R$ 22,5 milhões -, alguns especialistas apontam que, apesar de o banco genético auxiliar na identificação de criminosos, não reduz a criminalidade. No Reino Unido, onde há mais de 5 milhões de identificados, se questiona a eficácia da medida.
Os Estados Unidos armazenam mais de 13,5 milhões de perfis genéticos de condenados e cerca de 895 mil vestígios de local de crime. Lá, a lei evoluiu a tal ponto que, em junho deste ano, um americano foi julgado por duplo homicídio ocorrido há mais de 30 anos, a partir do DNA coletado em dois primos dele, combinando o estudo do sangue com o de genealogia.
Foi para evitar esse tipo de situação que o grupo de trabalho da Câmara reduziu o projeto de Moro nesse tema. O texto sugerido diz que apenas condenados por crimes violentos e sexuais serão identificados no banco e institui um procedimento para preservar as informações.
"O material genético é um dado sensível, não podemos permitir o uso de qualquer jeito, isso pode ter desdobramento até em termos de discriminação", observou o deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), que integra a comissão e atuou na modificação dessa parte da matéria.
COLETA COMPULSÓRIA
O ponto que mais diverge especialistas em torno do uso de informações genéticas para desvendar crimes é o que obriga presos a se submeterem ao procedimento. Para advogados da área, há atentado ao princípio da não autoincriminação, o direito constitucional que todos têm de não produzir provas contra si mesmos.
"Ninguém é obrigado a oferecer elementos corpóreos, teria que dar conta [de investigações] de outras formas, não compulsoriamente", aponta o advogado João Rafael de Oliveira.
De outro lado, o procurador de Justiça do Paraná Rodrigo Chemim avalia que a medida se compara à coleta de impressão digital e foto para fazer documentos, como o RG. "Se a tua digital é deixada numa cena do crime, identifico você por isso. E nunca se questionou isso, porque não é algo feito para trás [da coleta], mas para frente", afirma.
O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou questionamentos sobre a lei atual e considera constitucional a obrigatoriedade de submissão de condenados ao fornecimento de material. O assunto ainda está para ser apreciado pelos ministros da Suprema Corte.
A recente descoberta do suspeito de ter matado Rachel Genofre, segundo os especialistas, não pode interferir na decisão e nem nas mudanças na lei a serem votadas no Congresso Nacional.
"Nenhuma discussão jurídica pode perder espaço ao apelo popular, a gente não pode ter intenção de vingar-se, mas de reequilibrar a paz social", diz o advogado Gustavo Polido, que também é contra a obrigatoriedade da coleta de DNA para condenados.
Eles também argumentam que, apesar de improvável, há possibilidade de erros em perícias. Ou seja, o material genético nunca pode ser usado como único indício do crime. "Só pode ser usado, na verdade, se nenhum outro meio de prova não for suficiente", afirma Polido.