Brasil

Lidamos com aquilo que ninguém quer, diz coveiro

Folhapress | 14/07/20 - 20h37
Osmair Cândido durante entrevista para a TV Folha, em 2018 | Reprodução

"A família não pode acompanhar, o médico não pode fazer a necropsia, mas quem vai colocar a mãozinha lá? O coveiro", diz Osmair Camargo Cândido sobre os enterros daqueles que morreram em decorrência da Covid-19. "Lidamos com aquilo que ninguém quer", resume.

Na profissão há mais de três décadas e há cinco anos no cemitério da Penha, ele conta que devido ao grande número de mortes causados pela pandemia, profissionais da sua área têm sofrido grande desgaste psicológico.

"A pessoa sai de casa para baixo, abre a internet e qualquer canal de comunicação já te fala da possibilidade de contaminação", reflete. "Se estão mandando isolar é porque o contágio é rápido. A pessoa já começa a supor que vai lidar com pessoas mortas e, se pegar esse vírus, também vai morrer."

Ele enxerga que "a pandemia causa pavor" e que o maior medo entre as pessoas é quem será o próximo. "Você não sabe quem tem o vírus ou não, e aquele teste? Para você não tem, tem até reza do papa, tem tapinha nas costas, tem reportagem no jornal, mas o teste não tem."

Durante enterros nos últimos meses, o coveiro presenciou cenas marcantes, como de mães chorando e gritando o nome dos filhos. "É algo extremamente penoso", define ele, que acredita que a doença foi um "um convite à empatia, a se colocar no lugar do outro".

Candido compara o caminho de um paciente até a morte como um procedimento engessado como os trabalhadores dentro da fábrica como no filme "Tempos Modernos" (1936) de Charles Chaplin. O coveiro diz que, no cenário pandêmico, todos passam pelas mesmas etapas: "ambulância, médico, padre, cova, e o morto é só mais um numerozinho".

Enquanto conversa com a reportagem pelo telefone, ele, que é formado em filosofia pelo Mackenzie, conta que anda "cansadinho". "Imagina um velhinho com a perna esticada na cama", brinca ele que prefere não divulgar a idade exata "coloca aí que tenho quase 60 anos".

Ele também é colunista no podcast Finitude e leciona na Ananec (Associação Nacional de Necrópsia), mas devido à pandemia, as aulas foram interrompidas. "Dou aula de ética. A teoria gostam, mas praticar que é bom é uma dificuldade."

Cândido diz que não é de esquerda e nem de direita e é na necrópole que consegue fugir da dicotomia política, na qual enxerga de um lado o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e do outro Lula (PT). Mas elogia o prefeito o Bruno Covas (PSDB) e diz que tem uma admiração por ele.

"Gostaria que ele se restabelecesse", diz, sobre o câncer do prefeito.
Apesar de a profissão envolver tristeza, ele conta que raramente chora. "Sou coveiro porque quis ser, gosto de ver a sociedade de baixo para cima", afirma.

Ele acredita que a profissão lhe proporciona uma experiência social maravilhosa, pois sabe exatamente como o homem termina.

"O coveiro não reverencia apenas as pessoas que estão enlutadas, ele reverência também a morte", explica Cândido.

Para se tornar um bom coveiro, é preciso respeitar o silêncio e ser discreto em respeito aos presentes, diz. "Não pode falar nada. Você está ali, o cara pagou e você tem que ficar ali quietinho, sabe porquê? Porque o cara está no ápice da tristeza", diz.

"Ninguém gosta de alguém engraçadinho quando tá sepultando a mãe, o pai, ou o amigo. Fica quietinho e faz", diz.

Para ele, o lado bom da profissão é conhecer a verdade daqueles que estão enterrando os seus entes. Mas afirma que ser coveiro hoje em dia não é um bom negócio, "ninguém se aproxima demais".

Mesmo assim, ele diz que com tantos anos na profissão já presenciou os mais diversos velórios, como num que tocou rock'n'roll, outro que aconteceu um piquenique e um que teve até show de strip-tease. "A moça se zangou comigo porque tive que pedir para ela colocar a roupa", conta ele que relembra que "alguns presentes filmaram a palhaçada toda lá".

Ele acredita que se alguém quiser conhecer uma cidade, é preciso saber como a mesma sepulta as pessoas: "quem despreza o morto, vai desprezar o vivo". E cita, por exemplo, países como França e Argentina, em que os mortos são sepultados em lugares visitáveis, que se tornam locais turísticos ou nos Estados Unidos, onde foram construídos memoriais em homenagem a pessoas mortas.

"Eu tenho contato com todo mundo de necrotério", diz Cândido, que resume em poucas palavras o porquê da morte o fascinar tanto: é o futuro.