Brasil

Quem são as vítimas invisíveis do coronavírus?

Lucas Mamédio/ Site Campo Grande News | 29/06/20 - 16h49
Imagem: Freepik

Garotas de programas, travestis e transexuais já vivem em um mundo completamente marginalizado. São vidas e histórias ignoradas por uma sociedade quase cínica, que muitas vezes procura à noite aquilo que condena de dia. .

Estamos passando por umas das fases mais difíceis da história recente, em que existe uma preocupação generalizada para não expor pessoas ao coronavírus. São idosos, portadores doenças crônicas, de comorbidades, crianças, em resumo, quase todo mundo.

Mas seja sincero, já parou para pensar nesse perfil de pessoas que falamos no primeiro parágrafo? Se elas estão conseguindo se proteger, se estão conseguindo desempenhar o trabalho delas com segurança ou se ao menos estão conseguindo desempenhá-lo, de que forma seja?.

Pois a Cruz Vermelha de Mato Grosso do Sul está. A instituição, conhecida por ações humanitárias no mundo inteiro, está fazendo um trabalho de acompanhamento e aconselhamento para travestias e transexuais que trabalham nas ruas de Campo Grande em relação ao novo coronavírus.

Além do aconselhamento, um kit com máscaras, e vários produtos de higienização foram entregues, junto de um frasco com álcool em gel, preservativos e até lubrificante.

A ação realizada no final de semana também foi em alusão ao Dia Mundial do Orgulho LGBT, comemorado neste último domingo (28).  A equipe do "Lado B" do site Campo Grande News, acompanhou as visitas à noite e percebeu que o coronavírus preocupa, porém, é só é mais uma mazela em vidas tão calejadas.

Saímos da sede da Cruz Vermelha por volta das 20h em grupos de quatro pessoas divididos em dois carros. Quem esteve à frente da ação foi a coordenadora de primeiros socorros da instituição, Joelma Souza.

“São pessoas treinadas para fazerem esse tipo de abordagem, que conta ainda com uma psicóloga para situações em que haja necessidade de apoio psicológico durante as visitas”, explica Joelma.

O primeiro lugar onde conseguimos encontrar uma garota de programa foi na região da Avenida Costa e Silva. O protocolo de abordagem é sempre o mesmo: descem dois voluntários, conversam com a pessoa, perguntam se ela aceita o kit. Caso ela consinta, é dado um sinal para que um terceiro leve o kit que está no porta-malas.

Para que pudéssemos acompanhar, a responsabilidade de levar o kit ficou comigo.

A primeira menina gostou muito de receber o kit. Vinda do Acre, está há um mês em Campo Grande. Segundo ela, o movimento caiu bastante, uma constatação que se repetiu a noite toda, mas os clientes que ainda a procuram, não se mostram muito preocupados com o coronavírus. “Eles até comentam alguma coisa, mas fica só no comentário mesmo”.

Uma outra colega, em outra rua, diz que tudo continua como sempre esteve, liberal “sem máscara, sem camisinha”.

Na mesma região, uma travesti nos chama a atenção pelas preocupações éticas e morais em relação a como a crise do coronavírus está sendo levada pelas autoridades. Aos 38 anos, ela já trabalha na rua há 10. 

“Se o Brasil fosse um país sério a gente estaria muito melhor. Estão sendo capazes de nos roubar em plena pandemia”.

Ela expõe o desejo de morar na Europa ou em outro lugar. “O Brasil era pra estar muito melhor, ninguém tem a quantidade de riquezas naturais que temos, olha nosso tamanho, temos água em abundância, os outros países precisam de usinas nucleares para criar energia e a gente aqui, cheio de recursos”. Apesar de aceitar o kit, sobre o coronavírus diz que não tem dúvidas.

A menina que trabalha do outro lado da calçada sintetiza muito da situação em que elas são obrigadas a se colocar para não assustar e perder a clientela. “Eu não uso máscara para os clientes não acharem que estou doente, mas tenho muito medo sim de pegar o coronavírus”.

Ela também diz que não recebeu a devida orientação em um posto de saúde sobre a relação entre imunidade e efetividade do vírus. "Não souberam ou não quiseram me explicar se pessoas com outras doenças são mais vulneráveis". As voluntárias da Cruz Vermelha explicaram que sim.

Logo em seguida nos deparamos com outra história super interessante. Também oriunda do Acre, uma travesti que vamos chamar de Clarice está prestes a sair, mas fica para nos receber. 

Clarice é formada em pedagogia, chegou a lecionar por um ano no Acre, mas lamentou que o preconceito não deixou ela continuar. “Sou muito geniosa, temperamental, e lá tem muita provocação, por isso não aguentei”.

Clarice também joga vôlei em Campo Grande a até recebe por isso. Ela disse que estava na rua justamente porque o time parou de pagar o salário durante a pandemia e o trabalho ali era uma forma de ganhar dinheiro.

Saindo da região da Costa e Silva, fomos para região da Avenida das Bandeiras, outro ponto conhecido. Lá uma profissional chorou porque não via a mãe há 10 meses e se sentia humilhada por ter que trabalhar se não seria impossível pagar a pensão onde mora.

Uma outra travesti que vamos chamar de Gabriela diz que está “vendendo o almoço para comer a janta”. Ela é o do interior, veio para capital justamente por conta da pandemia, porque não poderia trabalhar na rua no interior. “Eu prefiro trabalhar em site, mas não está tendo procura, então preciso ir pra rua, por isso venho pra Campo Grande”. 

Formada em administração e tendo feito vários cursos de cabeleireira, critica o modo como a sociedade enxerga as travestis e transexuais. “A verdade é que fazemos isso porque ninguém nos dá trabalho”.

Mais uma vez a entrega dos kits se tornou um pequeno desabafo. Eram pouco minutos de conversa em que ouvíamos coisas interessantíssimas e absurdas ao mesmo tempo, naturalizadas pela rotina de sofrimento e pela necessidade de viver.

O trabalho tinha acabado para a gente e para muitas delas também, mas na noite seguinte tudo recomeçaria, não pra nós.