Saúde

Pílula anti-HIV tem alta adesão entre gays, mas falha em alcançar trans

Prevenção disponível no SUS tem bons índices, mas ainda não atinge todos os públicos vulneráveis

Folhapress | 18/03/19 - 19h07
Ilustração | Pixabay

Pouco mais de um ano após ser incluída no SUS, a oferta de uma pílula diária para prevenir o HIV tem registrado boa adesão entre gays, ao mesmo tempo em que enfrenta dificuldade em alcançar outros grupos considerados vulneráveis ao vírus.

Dados do Ministério da Saúde, obtidos pela Folha, mostram que ainda há baixa procura da Prep (profilaxia pré-exposição ao HIV) entre transexuais e jovens de 18 a 24 anos –grupos com maior prevalência de HIV ou que registram aumento de casos de Aids nos últimos anos.

A prevenção é composta pela associação dos antirretrovirais tenofovir e entricitabina em uma só pílula de uso diário. Se o protocolo for seguido, a eficácia chega a quase 100%, o que a torna uma das principais apostas para conter o avanço da Aids, sobretudo em grupos de maior risco.

Fazem parte da lista gays, transexuais, profissionais do sexo e casais sorodiscordantes (nos quais um dos parceiros é soropositivo). A indicação segue critérios como número de parceiros e frequência de relações desprotegidas.

Do total de usuários de Prep hoje no país, 82,7% são gays e HSH (homens que fazem sexo com homens, termo usado para designar aqueles que não se identificam como gays).

Outros 8% são mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero designado ao nascerem) e 5,9% são homens cisgênero heterossexuais. Em contrapartida, apenas 3,2% são mulheres transexuais e 0,2%, homens trans, o que preocupa especialistas.

Hoje a prevalência do vírus HIV na população geral é de 0,4%. Entre gays e homens que fazem sexo com homens, de 10,5%. Já entre transexuais o índice é de 31,2%.

"O que todos que trabalham com Prep querem é que outras populações, além dos homens que fazem sexo com homens, também busquem os serviços", afirma a especialista Adele Benzaken.

Responsável pela implementação da Prep no SUS, Benzaken aponta outros desafios, como aumentar a parcela de usuários jovens, negros e de baixa escolaridade.

Hoje, a maior parte dos usuários são brancos e com mais de 12 anos de estudos. "Sabemos que o HIV cresce entre jovens de baixa escolaridade. É preciso ter projetos educativos sobre Prep para essa população mais vulnerável."

Para o infectologista Esper Kallás, o acesso por pessoas com mais informação é natural no início da oferta de novos serviços. "O que é mais important: Prep para pessoa com curso superior e conhecimento das formas de transmissão ou para o adolescente negro da periferia? Claro que todo mundo precisa, mas queremos chegar principalmente no segundo grupo."

Em São Paulo, a expansão recente da oferta da Prep para unidades localizadas em áreas periféricas tem colaborado para rever essas distorções, afirma Elza Maria Alves Ferreira, técnica do programa municipal de DTS/Aids.

"Na medida em que expandimos para a periferia começamos a ver expansão também para trans e gays com menor poder aquisitivo", diz.

Para Tatiane Araújo, presidente da Rede Trans, o menor acesso de transexuais à Prep coincide com o cenário de exclusão vivido por essa população. "Temos problemas em todas as áreas de saúde. Imagina com algo estigmatizado como o HIV", diz ela, que defende horários ampliados de atendimento e divulgação direcionada.

Apesar de a Prep ainda estar restrita a alguns grupos, especialistas veem de forma positiva os dados iniciais da oferta do método no SUS.

A previsão era que a profilaxia fosse ofertada para 7.000 usuários no primeiro ano na rede pública. Em 2018, 8.108 pessoas iniciaram o tratamento preventivo. Destas, 6.733 ainda o utilizam. A taxa de interrupção do tratamento foi de 11% em até 30 dias e 7% nos meses seguintes. Segundo Benzaken, o parâmetro é similar a dados internacionais.

De acordo com os especialistas, os dados de adesão à pílula, de uso diário, também estão dentro do esperado.

Há, porém, alguns impasses. Um deles é a resistência de alguns profissionais de saúde em oferecer o serviço.

Após iniciar o uso de Prep há quatro anos como voluntário na pesquisa Prep Brasil, o programador Piero Mori, 35, passou por uma situação do tipo ao buscar a pílula em um local diferente após o fim do estudo em que participava.

"A Prep ainda sofre preconceito imenso. Quando fui mudar de serviço, a assistente social falou de um jeito como se eu não devesse usar", disse. "Como eu já tinha usado antes, sabia dos benefícios. Mas e se fosse um menino chegando pela primeira vez?"

Para ele, que hoje coordena um grupo no Facebook para tirar dúvidas de usuários, a pílula aumentou sua segurança. "Eu usava camisinha, mas sempre tem aquele momento em que você se empolga, vacila e descuida", conta.

"Antes, vivia com medo que qualquer relação descuidada ia ser aquela em que eu ia contrair o HIV. Hoje em dia, nenhuma das minhas relações é seguida por aquele fantasma."

Segundo ele, hoje o temor entre usuários é outro: descontinuação da política.

Neste ano, o método não foi citado na campanha de prevenção ao HIV no Carnaval. Também não houve menção a homens gays.

Antes da troca de gestão, uma das ideias era usar a campanha justamente para ampliar a divulgação da Prep para populações-chave.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também tem dado sinais contraditórios em relação à profilaxia. Em alguns eventos, ele já disse que pretende mantê-la. Em outros, fez críticas.

"Acho que a Prep pode e deve ser utilizada nas indicações corretas. Mas acho que as pessoas se cansam um pouco de fazer todo um tratamento para poder ter um comportamento de risco. É tão mais simples você usar um preservativo e ficar livre do medicamento", disse em fevereiro.

Para Kallás, o argumento não se justifica. "Assim como a camisinha, a Prep é uma barreira ao HIV, com a vantagem de que não interfere no ato sexual."

Em nota, o Ministério da Saúde informa que está em andamento uma licitação para compra de 4,4 milhões de comprimidos de Prep para distribuição no SUS –um sinal de que a oferta da profilaxia, por enquanto, continua.

"A prevenção com a Prep tem que chegar a outras populações além dos homens que fazem sexo com homens, como homens e mulheres trans, por causa da alta vulnerabilidade ao HIV
Adele Benzaken
médica sanitarista

Pílula anti-HIV
O que é a Prep
Pílula composta da associação dos antirretrovirais tenofovir e entricitabina e indicada para pessoas com maior risco de exposição ao HIV. Deve ser tomada diariamente para garantir a eficácia, apontada em pesquisas como superior a 90%

A quem é indicada
O público-alvo são populações mais vulneráveis à infecção pelo HIV, como gays e outros homens que fazem sexo com homens, transexuais, trabalhadores do sexo e casais sorodiscordantes. São levados em conta número de parceiros sexuais, episódios repetidos de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e frequência de relações desprotegidas ou uso repetido de profilaxia pós-exposição

Prep no SUS

6.733
é o número de pessoas que usavam a Prep até o fim de 2018

31%
se declararam ter parceiro com HIV (união sorodiscordante)

9%
se declararam como trabalhadores do sexo

Onde encontrar a Prep
109 serviços do SUS oferecem Prep em 83 municípios

Veja lista em: www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/prep-profilaxia- pre-exposicao